“O que assistimos hoje não é apenas um retrocesso, é a negação, por parte do Estado, do direito do índio, direito esse anterior à colonização. O que presenciamos hoje é a explícita tentativa de destruir as conquistas dos povos indígenas no Brasil“, escreve Adelino Mendez, antropólogo doutorando no programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – HCTE), Mestre em Antropologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades do IUPERJ, em artigo publicado por Jornalistas Livres, 25-06-2020.
Eis o artigo.
Da Colônia à República, o Brasil sempre reconheceu o direito dos povos indígenas ocuparem seus territórios imemoriais. O Alvará Régio de 1680, a Lei de Terras de 1850 e a Lei de Terras dos Índios de 1928 (que regularizou a situação dos índios nascidos em território nacional) revelam uma relação estável do Estado com as populações indígenas ao longo de séculos. A Carta Régia de 1655 reconhecia o direito dos índios aos seus territórios tradicionais, mas também dizia que eles podiam ser capturados ou mortos nas chamadas “guerras justas”.
O que acontecia nas terras da Colônia era bem diferente do que previam os legisladores. Quase nada dessas leis chegava à distante, vasta e esquecida Amazônia, mas elas demonstram que o Brasil sempre reconheceu algum direito aos povos indígenas. O direito às terras não impediu as “guerras de pacificação” na Amazônia e em outras regiões onde o índio surgia como entrave ao avanço colonialista.
A Constituição de 1934 (artigo 129) conferiu maior segurança a esse direito essencial dos índios, seguida pelas demais Constituições (1937, 1946, 1967), que reconheceram aos povos indígenas o direito à posse de suas terras tradicionais e imemoriais. A Constituição de 1988, que ampliou os direitos individuais, tem um capítulo inteiro sobre direitos indígenas, reforçando o direito às terras (artigo 231).
A presença do índio no debate sobre a construção do Brasil tem sido constante. No século XX avançamos em direção a uma política indigenista eficaz. O movimento indígena nos anos 80, avança de forma organizada na defesa do direito do índio e na luta pelas demarcações dos territórios tradicionais. Nos anos 90, o primeiro povo indígena a ganhar na justiça o direito de retornar ao seu território tradicional, recebeu um documentário dirigido por Aurelio Michiles. Os Panará representavam o ápice da conquista indígena em um mundo de não-indígenas.
O que assistimos hoje não é apenas um retrocesso, é a negação, por parte do Estado, do direito do índio, direito esse anterior à colonização. O que presenciamos hoje é a explícita tentativa de destruir as conquistas dos povos indígenas no Brasil. Um Estado omisso e criminoso que aparelha grupos interessados em desarticular o movimento indígena. Um Brasil ausente, que enterra todos os dias corpos indígenas silenciosamente.
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