PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA: Senado “passa a boiada” e aprova novo marco do saneamento

Victor Ohana VICTOR OHANA – Carta Capital  

Novas regras facilitam privatização de empresas públicas de distribuição de água e de esgotamento sanitário

Durante sessão por videochamada em plena pandemia do novo coronavírus, o Senado Federal decidiu “passar a boiada” e pautar uma votação histórica nesta quarta-feira 24: o novo marco regulatório do saneamento básico. O texto altera a Lei 11.445 de 2007 e facilita a concessão e a privatização de empresas públicas de saneamento básico. A matéria foi aprovada por 65 votos favoráveis e 13 contrários e vai a sanção do presidente Jair Bolsonaro.

O projeto havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, com a relatoria do deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP). Ao chegar no Senado, foi para as mãos do senador tucano Tasso Jereissati (PSDB-CE). O argumento dos defensores do texto é que o estado não tem dinheiro para investir nas empresas públicas de saneamento e, portanto, é preciso atrair investimentos privados para universalizar o acesso à distribuição de água e ao esgotamento sanitário.

Na sessão do Senado, parlamentares protestaram contra a votação e defenderam que a pauta deveria ser discutida em uma sessão presencial. O senador Rogério Carvalho (PT-SE), líder da bancada petista no Senado, posicionou-se em total desacordo com apreciação da matéria, alegando “inoportunidade e açodamento” porque “a matéria não se encontra devidamente discutida”.

Em contraposição, o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) afirmou que a pauta passou por 16 audiências públicas e foi tratada por 167 debatedores em 49 reuniões. “Discordando respeitosamente do líder Rogério Carvalho, não procede a alegação de que a matéria teria sido insuficientemente discutida ou pautada de forma açodada”.

Ainda assim, Alcolumbre deixou que as bancadas partidárias se manifestassem sobre manter ou não a votação histórica, mesmo que o país esteja sob estado de calamidade pública e as sessões remotas dificultem os debates. Entre os representantes de bancadas que apoiaram Alcolumbre, estiveram os senadores Fabiano Contarato (Rede-ES), Kátia Abreu (PP-TO), Major Olimpio (PSL-SP), Zequinha Marinho (PSC-PA), Telmário Mota (PROS-RR), Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o líder do governo Bolsonaro no Senado, Eduardo Bezerra (MDB-PE).

Apenas os representantes do PT e do PDT, Rogério Carvalho e Weverton (MA), orientaram seus partidos a votarem contra a manutenção da pauta. A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) também manifestou preocupação com a falta de mais uma sessão para debates, inviabilizada pela votação por videochamada. No entanto, ela liberou a bancada para votar como quisesse, por divergências internas. A liderança do Republicanos também liberou seus senadores.

 

Conforme mostrou CartaCapital seguidas vezes, especialistas criticam o projeto e afirmam que a entrega do saneamento para as mãos dos empresários não assegura a universalização do serviço. Ouvido em janeiro deste ano, o relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos à Água e ao Esgotamento, Léo Heller, alertou que o novo marco do saneamento pode aprofundar a desigualdade e vai na contramão mundial de reestatização do setor.

Após a aprovação nesta quarta-feira 24, Léo Heller afirmou a CartaCapital que acompanhou novamente os argumentos dos defensores do projeto e avalia que houve um “grande sofisma”. Para o pesquisador, os apoiadores do projeto partem de um diagnóstico correto sobre as limitações do acesso ao saneamento, no entanto, apontam para uma receita que “talvez agravará o problema”.

“É muito claro que o projeto tem um viés privatista muito forte, que vai na contramão das tendências internacionais, e um ambiente de regulação dos serviços ainda muito frágil, com chances fortes de ser capturada pelos prestadores de serviço. É um ambiente que pode favorecer muito a lógica de maximização de lucros pelos prestadores privados, o que resultará em manter excluídas aquelas populações que hoje já não têm acesso aos serviços”, declarou.

A ampliação da participação privada no setor de saneamento também é criticada pelo secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Edson Aparecido. Para o representante da entidade, a abertura ao empresariado pode provocar o aumento nas contas de água e de coleta de esgoto, além de prejudicar o acesso ao serviço em lugares longínquos, que não despertam interesse ao mercado.

“Esse projeto aprovado vai significar uma desestruturação importante do setor. Uma delas é o fim do subsídio cruzado, que é um instrumento que permite que aquelas cidades onde os serviços de saneamento são superavitários, do ponto de vista econômico e financeiro, subsidiem aqueles que são deficitários, de forma a garantir minimamente uma modicidade tarifária. Essa lei aprovada vai acabar com esse subsídio e, com isso, a tendência é aumentar muito a conta de água e ampliar as pessoas excluídas do acesso”, diz Aparecido.

 

 

O engenheiro civil e ex-presidente da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), Abelardo Oliveira, considerou que a aprovação do novo marco representa um “fato histórico vergonhoso” para o Senado Federal. Para Oliveira, o projeto é danoso porque a iniciativa privada tende a não atender populações que moram em zonas rurais e pequenos municípios.

“Não é um projeto para universalizar, mas para criar um monopólio privado no setor de saneamento no país, mesmo considerando as experiências internacionais de reestatização, como em Berlim, Paris e Budapeste. O setor privado não vai trazer investimentos”, considerou. “Nós entendemos que o marco não toca nas questões fundamentais, como a criação de um fundo nacional de universalização para o saneamento básico.”

Parlamentares da oposição também se manifestaram contra o projeto. O deputado federal Afonso Florence (PT-BA) diz que as modificações podem “obrigar a privatização”. Ouvido por CartaCapital, o parlamentar afirmou que trata-se de “especulação de setor de rapinagem do mercado, querendo comprar barato empresas saudáveis, de boa performance de gestão, para sucateá-las e revendê-las”.

“Isso é um escândalo. Votar durante uma pandemia, que era para estar cuidando de combater a covid-19, estruturar o Sistema Único de Saúde e garantir o isolamento social, é uma demonstração de que eles sabem que isso [o marco] não passaria, como não passou em duas outras oportunidades”, declarou.

Nas redes sociais, também se opuseram ao projeto os deputados Alexandre Padilha (PT-SP), Jorge Solla (PT-BA), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Glauber Braga (PSOL-RJ), Marcelo Freixo (PSOL-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Túlio Gadêlha (PDT-PE), Lídice da Mata (PSB-BA), além de ex-parlamentares como Roberto Requião (MDB-PR) e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS).

Segundo levantamento de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 35 milhões de brasileiros (16,38%) não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões (47%) não têm rede de coleta de esgoto. Os senadores prometem que a facilitação das privatizações poderá universalizar o acesso ao saneamento até 2033 e preveem investimentos de 500 bilhões de reais até 700 bilhões de reais.

fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/senado-passa-a-boiada-e-aprova-novo-marco-do-saneamento/

 


Senado aprova novo marco legal do saneamento que abre setor para privatizações 

Além de facilitar a privatização de estatais, o projeto de lei (PL) 4.162/2019 prorroga o prazo para o fim dos lixões

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

 

Ouça o áudio:

Proposta extingue modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto – Prefeitura de Bagé

O Senado aprovou nesta quarta-feira (24) o novo marco legal do saneamento básico com um placar de 65 votos favoráveis e 13 contrários. O Projeto de Lei (PL) 4.162/2019 facilita a privatização de estatais do setor e prorroga o prazo para o fim dos lixões e agora precisa da sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para entrar em vigor.

O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não fosse alterado, o que obrigaria que a proposta voltasse à Câmara.

O novo marco transforma os contratos em vigor em concessões com a empresa privada que vier a assumir a estatal. O projeto também extingue o modelo atual de contrato entre os municípios e as empresas estaduais de água e esgoto – pelas regras em vigor, as companhias precisam obedecer critérios de prestação e tarifação, mas podem atuar sem concorrência. Além disso, o texto torna obrigatória a abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas.

::Saiba mais: Entidades, políticos e personalidades se mobilizam online contra PL do saneamento::

A proposta prevê que os contratos que já foram assinados serão mantidos até março de 2022 e poderão ser prorrogados por 30 anos. No entanto, esses contratos deverão comprovar viabilidade econômico-financeira, ou seja, as empresas devem demonstrar que conseguem se manter por conta própria  – via cobrança de tarifas e de contratação de dívida.

Os contratos também deverão se comprometer com metas de universalização a serem cumpridas até o fim de 2033: cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto. Essas porcentagens são calculadas sobre a população da área atendida.

Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, 83,6% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. De acordo com as entidades, a privatização do serviço pode impedir o acesso aos serviços por uma parte da população.

Edição: Rodrigo Chagas

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/24/senado-aprova-novo-marco-legal-do-saneamento-que-abre-setor-para-privatizacoes

 


Entenda como a privatização da água no Brasil pode provocar um retrocesso ao planeta

O projeto de lei promove uma mudança profunda no sistema brasileiro de água e esgotos. Tanto que recebeu o apelido de “marco regulatório do saneamento”

PAULO KLIASS

Carta Maior Carta Maior

São Paulo (SP) (Brasil)

 

Tem gente que chama esse tipo de situação de coincidência. Outras pessoas, mais sofisticadas, apelam para Carl Jung e falam em sincronicidade. Enfim, o fato que nos interessa reter no momento é que quase nada acontece por acaso. Ainda mais nesses tempos difíceis do bolsonarismo e da noite de trevas do neoliberalismo em que as forças do conservadorismo pretendem nos enfiar.

Pois então, parte da agenda política esse mês pode ser lida por essa ótica. Enquanto o Itamaraty de Ernesto Araújo comandava uma triste operação de descrédito e inviabilização de avanços necessários na reunião da COP 25, os tucanos e seus aliados articulavam no Congresso Nacional um movimento que pode provocar um retrocesso secular em termos de um bem essencial também para o futuro do planeta.

A postura da diplomacia brasileira na Conferência do Clima da ONU em Madrid foi lamentável. Promoveram alianças com os setores que mais dificultam a busca de consensos para o cumprimento dos acordos para redução dos efeitos da poluição, do desmatamento e de outras ações sobre o processo de aquecimento global. As consequências dessa postura irresponsável para o futuro da humanidade são trágicas.

Estudos e pesquisas comprovam que alguns dos problemas associados a esse processo descontrolado de comprometimento do meio ambiente são os eventos climáticos extremos no plano global. Em particular, os períodos de grande seca e estiagem, onde a falta de chuvas pode aprofundar ainda mais a ausência de água para uso humano no planeta.

A grande maioria dos estudos prospectivos realizados no mundo são unânimes em apontar a água como bem essencial

Tucanos em prol da privatização.

Pois, enquanto os representantes da diplomacia bolsonarista nos faziam passar vergonha e isolamento no plano internacional, aqui no Congresso Nacional seguia a passos rápidos a tramitação de um Projeto de Lei de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB/CE). Trata-se do PL 3.261/2019, que foi votado rapidamente na casa comandada por David Alcolumbre (DEM/AP). O projeto promove uma mudança profunda no sistema brasileiro de água e esgotos. Tanto que recebeu o apelido de “marco regulatório do saneamento”.

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EUA, Coca-cola e PSDB: os interesses por trás do novo marco legal que privatiza a água

Essa aliança entre os membros do antigo PFL e os tucanos conseguiu a impressionante marca de promover a aprovação de um documento tão complexo como esse em apenas uma semana no Senado Federal. Ele foi apresentado pelo autor em 30 de maio e aprovado de forma definitiva em 6 de junho. Uma loucura. O projeto passou como um bólido pela comissão de infraestrutura e foi aprovado pelo plenário em ritmo de urgência.

Na sequência, o texto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, também presidida por um parlamentar do Democratas. Mas a condução de Rodrigo Maia não foi inspirada na rapidez de seu par no Senado. O Presidente da Câmara constituiu uma Comissão Especial para tratar da matéria em agosto. Foram realizadas diversas audiências públicas para debater o tema e outros projetos já existentes foram apensados ao texto de Jereissati. Porém, a atenção acabou recaindo ao longo do ano para os assuntos mais urgentes, a exemplo da Reforma da Previdência, Reforma Tributária e Reforma Administrativa.

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Com isso, o PL foi avançando sem muito alarde e a primeira votação no plenário da Câmara acabou ocorrendo a toque de caixa no dia 11 de dezembro. Naquela sessão foi aprovado o texto base, mas ainda estão pendentes de apreciação e votação as emendas apresentadas pelos deputados. A estratégia para angariar apoios nas diferentes bancadas conta com a pressão dos próprios governadores da oposição. A exemplo do ocorrido com temas como as reformas da previdência e administrativa, parte dos chefes de executivo estadual contam com a aprovação das mesmas pelo Congresso Nacional para implementar essas ações nos seus espaços de atuação.

Marco regulatório ou todo poder ao capital?

A espinha dorsal do novo marco regulatório passa pelo aproveitamento da já existente Agência Nacional de Águas (ANA) e com a intenção de ampliar seu escopo de atribuições. Assim, ela se transforma em Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, com a competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

Além disso, o texto abre espaço para estimular a privatização das empresas públicas ou estatais de saneamento já existentes pelo país. Por outro lado, o novo ordenamento jurídico cria as bases para a transformação dos serviços de saneamento público em mais uma mercadoria a ser comercializada pelas empresas privadas. No caso, caberia à agência reguladora as funções de determinação de preços e condições de operação nesse mercado.

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Apesar do discurso pró liberalização e contra a presença do Estado no setor, o fato concreto é que as condições técnicas e operacionais no sistema não admitem a possibilidade da tão abençoada “livre concorrência”, como tanto perseguem os liberais. Imagine o cidadão/consumidor decidindo qual das torneiras da cozinha ele vai abrir em determinado dia para obter a menor tarifa de água. Ou então, por qual dos canos de esgoto ele vai lançar seus dejetos para a rede de saneamento, também para “maximizar” seus interesses econômicos.

O modelo das agências reguladoras e a forma como têm sido conduzidas desde sua criação torna evidentes os verdadeiros interesses por trás do discurso de concorrência e eficiência. Os cidadãos e consumidores sempre foram deixados para trás no que se refere a prioridades nas respectivas agendas. Banco Central, ANEEL, ANATEL, ANS, ANVISA, ANAC e outras agências converteram-se em fiéis defensoras dos interesses das empresas que atuam nos setores que elas deveriam regular. Preços, qualidade dos serviços, defesa dos consumidores e temas semelhantes são sistematicamente esquecidos.

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Ora, todos sabemos que esse blablablá é mera fantasia idealizada para justificar a transferência de mais esse ramo da atividade econômica para a maximização da acumulação de capital privado. Não existe concorrência possível nesse mercado. Trata-se de um modelo que só admite o monopólio como ofertante do bem. Cabe à sociedade decidir se prefere uma empresa pública ou privada.

Tampouco é mera casualidade que essa mudança no marco regulatório ocorra no momento em que os grandes conglomerados internacionais do setor estejam se reposicionando estrategicamente. Nestlé e Coca-Cola, por exemplo, começam a se preparar para o domínio de fontes de água por todos os continentes. Isso significa que o processo de mercantilização de mais esse bem da natureza avança rapidamente em escala global.

Água é fator estratégico para Humanidade.

A grande maioria dos estudos prospectivos realizados no mundo são unânimes em apontar a água como bem essencial e cada vez ameaçado em sua disponibilidade. Assim como ocorreu com o petróleo e outras fontes energéticas no passado, a tendência no tempo presente é de considerar as fontes de água como reservas estratégicas de sobrevivência das nações. Fala-se inclusive que ela (ou melhor, a ausência dela) pode converter-se em elemento detonador de conflitos bélicos regionais.

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E nessa matéria, o Brasil apresenta uma posição também de destaque. Temos uma costa oceânica de milhares de quilômetros. Apresentamos uma rede fluvial das mais importantes do planeta, com bacias estratégicas como a amazônica. Nosso território está localizado sobre uma das mais importantes reservas de água subterrânea, o Aquífero Guarani.

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Os dirigentes dos grandes negócios em escala global não se cansam de pressionar governos para que as fontes de água também sejam submetidas a processo de liberalização e privatização. Não nos esqueçamos de que nosso subsolo foi entregue à exploração privada, depois de décadas de propriedade e monopólio de exploração pela União. Assim foi com minérios e petróleo. A exploração da energia também seguiu o mesmo caminho. Agora, a fonte de maior valor estratégico no futuro é a água. 

Essa é a razão pela intensa movimentação nos últimos tempos. O interesse é um só. Trata-se da busca pela apropriação privada dos rendimentos derivados do consumo da água. Cabe às forças democráticas e progressistas em nosso País exercer seu papel e impedir que esse caminho da privatização seja viabilizado por meio desse marco regulatório desvirtuado.

*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

fonte: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/economia/62320/entenda-como-a-privatizacao-da-agua-no-brasil-pode-provocar-um-retrocesso-ao-planeta


 

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Por Amauri Pollachi

Quais interesses estão por trás da atuação em favor da rápida aprovação do Projeto de Lei (PL) 4.162, de 2019, que tramita no Senado Federal? Na prática, esse projeto viabiliza um oligopólio privado nos serviços de água e esgoto, alavancando exponencialmente a privatização do saneamento básico brasileiro. O seu conteúdo, trazido das arquivadas MP 844/2018 e MP 868/2018, está longe de ser um consenso entre parlamentares e grande parte das entidades de representação atuantes no saneamento, dos municípios e dos estados.

As dificuldades enfrentadas no acesso ao saneamento básico não se relacionam com a necessidade de alteração da Lei nº 11.445, de 2007, que definiu as diretrizes para o setor, como pretende o PL 4.162. Essa lei, inovadora por estabelecer o marco para o saneamento básico após vinte anos sem qualquer orientação, ofereceu condições para que o setor tivesse avanços positivos e expressivos em todos os seus indicadores desde 2007. Ainda há muitos desafios a superar. Entretanto, é um enorme erro apontar, muitas vezes manipulando dados, que os problemas no saneamento residem na prestação de serviços por entes públicos. Os argumentos a favor do PL 4.162/2019 deliberadamente esquecem do desempenho do setor privado no saneamento, com péssimos resultados na prestação dos serviços, por exemplo, nos municípios de Manaus (AM) Itu (SP) e no Estado do Tocantins. Em suma, abrir espaço para os negócios privados à custa do desmonte de autarquias e empresas estaduais e municipais de saneamento básico, tal como induz o malfadado projeto de lei, não é a solução para a universalização de água e esgotos a preços compatíveis com a condição social da população.

Aliás, é falsa a argumentação de que a legislação atual impede a atuação do setor privado no saneamento, pois ela já dispõe de formas de participação mediante concessão total ou parcial, subconcessão, PPP, alienação total ou parcial dos ativos, emissão de debentures e locação de ativos, entre outras.

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Os municípios brasileiros, sobretudo os menores, necessitam de apoio técnico e financeiro para o planejamento e a expansão dos seus sistemas. É inconcebível que o saneamento básico, setor essencial para o desenvolvimento socioeconômico, não disponha de um fundo nacional para viabilizar a universalização e não proporcione subsídios diretos e indiretos à população carente e mais vulnerável, a exemplo de outros setores (energia, telefonia e transporte público) e da experiência em diversos países.

Por décadas, o saneamento amargou a ausência das culturas de planejamento, de regulação e de fiscalização e, principalmente, de aportes regulares de recursos públicos, fato que somente começou a reverter-se no século XXI. Ainda, é notória a ausência de integração com políticas públicas de habitação, saúde, recursos hídricos, meio ambiente e planejamento urbano.

Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), de 2019, entre 2003-2017, o Governo Federal disponibilizou R$166,1 bi1, entre recursos onerosos e não onerosos. Para atender toda a população brasileira em abastecimento de água e esgotamento sanitário são necessários R$ 357,15 bilhões2 para as áreas urbana e rural, sendo R$ 142,15 bilhões para água e R$ 215 bilhões para esgoto, incluindo recursos para implantação, ampliação e reposição.

A ampla e irrestrita privatização não vai melhorar a gestão e trazer os investimentos necessários à universalização dos serviços de água e esgoto. A alavancagem do setor de saneamento por meio de financiamentos com agentes nacionais ou internacionais pelo tomador público ou privado será sempre limitada pela capacidade de geração de recursos dos ativos dos prestadores de serviço. As experiências nacionais e internacionais demonstram que a expectativa de aportes elevadíssimos de recursos privados carece de sustentação em fatos e dados, pois se deve avaliar a remuneração deste capital a partir dos excedentes econômicos gerados no setor.

Manaus, após 20 anos de gestão privada, tem 12,5% de coleta de esgotos e mais de 600 mil pessoas sem acesso à água. O Instituto Trata Brasil coloca o saneamento de Manaus – 6° maior município brasileiro – em 96º lugar entre os 100 maiores municípios do país3. Não por acaso, as regiões da cidade mais assoladas pela Covid-19 são as mais desassistidas em saneamento básico. Este estudo também aponta que as dez melhores cidades são operadas por autarquias ou empresas públicas e apresentam indicadores elevadíssimos de atendimento.

Estudo publicado em maio de 2020 pelo Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, mostra que 1.408 municípios de 58 países, nos 5 continentes, reestatizaram seus serviços, sendo que 312 municípios na área de água e/ou esgoto de 36 países entre os anos de 2000 e 2019. Encontram-se casos emblemáticos na Alemanha, nos EUA, no Canadá, na Espanha e na França, país onde 152 municípios, inclusive Paris, sede das duas maiores empresas multinacionais que atuam setor4, tiveram os serviços remunicipalizados. A reestatização deveu-se: às falsas promessas dos operadores privados; à prevalência do interesse do lucro sobre o interesse das comunidades; ao não cumprimento das metas contratuais de investimentos e expansão e universalização principalmente das áreas periféricas e mais carentes; aos aumentos abusivos de tarifas; e a deficiência dos órgãos reguladores para garantir regras contratuais, impedir aumento abusivo das tarifas e punir as empresas.

Não se trata de corporativismo, mas da garantia do acesso aos serviços de saneamento básico para toda a população, inclusive aquela que não tem condições de pagar integralmente pelos serviços, não pode ser submetida aos interesses privados, aonde o lucro vem em primeiríssimo lugar. O saneamento não pode prescindir de uma forte atuação dos operadores públicos estaduais e municipais.

Não será por meio do PL 4.162, de 2019, que virá o “remédio” que trará a universalização. Ele servirá, isso sim, para desestruturar completamente o setor, ampliar a exclusão social da população na periferia das grandes cidades, nos pequenos municípios e na zona rural e provocar profunda insegurança jurídica que jogará o saneamento para a estagnação. Será um verdadeiro desastre. Um remédio que vai matar o doente.

1 Dados Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS

2 Valores atualizados pelo IGP-DI (FGV) para dezembro de 2017.

3 http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/ranking_2020/Relatorio__Ranking_2020_18.pdf

4 www.tni.org/en/futureispublic

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