“Desde o governo Temer, quem foi anistiado não recebeu”, diz analista sobre ditadura

Colaborador do relatório da Comissão Nacional da Verdade analisa contexto da “desanistia” promovida por Bolsonaro

Catarina Barbosa
Brasil de Fato | Belém (PA) |

 

De acordo com a decisão do governo, cabos da Aeronáutica que eram contra o regime não são reconhecidos como perseguidos políticos. – Reprodução

No dia 8 de junho, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, desanistiou 295 militares de uma só vez alegando “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. O ato faz reacender discussões importantes sobre o que foi a Lei da Anistia e o que ela significa para o imaginário da população ainda hoje. 

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Consultores do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) afirmam que a decisão da ministra é um retrocesso, pois prejudica, mais uma vez, quem foi perseguido por ser contra o regime militar. Para Sebastião Neto, um dos colaboradores do relatório da Comissão Nacional da Verdade não há dúvidas quanto à legitimidade e direitos que os cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) possuem.

“Foram perseguidos sim, porque eram cabos e mais, nós temos milhares de processos para serem julgados. Desde o começo do governo Temer praticamente todo mundo que foi anistiado não recebeu até hoje. A Lei da Anistia além de prejudicar, não permite a punição dos torturadores, dos mandantes, dos generais. Por isso que não tem nenhum general preso no Brasil”, critica. 

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Lei da Anistia foi publicada em 28 de agosto de 1979. Com ela, o último presidente da ditadura, João Baptista Figueiredo, concedeu o perdão aos perseguidos políticos, àqueles que eram contra o regime militar. O impasse é que a lei acabou beneficiando também os que cometeram crimes na ditadura, como torturas. 

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O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) além de defensor do regime militar é um admirador do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI e torturador condenado. Dessa forma, a decisão de ministra Damares Alves já havia sinalizado que revisar a anistia dos cabos que resistiam ao regime será uma política do governo Bolsonaro. 

Justificativa

O argumento do governo é que a desanistia dos 295 militares foi feita devido à “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. Contudo, a discussão começa com interpretações da portaria 1.104/64, no primeiro ano da ditadura militar. O documento dizia que o tempo de serviço dos cabos era limitado a oito anos. Depois disso, eles seriam automaticamente desligados e isso só não ocorreria se o militar fosse aprovado no concurso para sargento.

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Em 2002, a Comissão de Anistia identificou indícios de que, na verdade, os militares da FAB eram vistos como subversivos pela ditadura, logo, a portaria 1.104/64, foi um instrumento editado por motivação política.

Assim, ainda em 2002, foi editada a Súmula Administrativa 2002.07.003. O documento diz que a portaria 1.104/64 é “ato de exceção, de natureza exclusivamente política”. Foi com base nesse documento que se abriu a possibilidade de anistiar 2,5 mil cabos.

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O deputado Adriano Diogo (PT), que participou da resistência à ditadura militar e da luta pela anistia e pelos direitos humanos, explica que em 1964 houveram várias mobilizações, inclusive, com o Comício do dia 13 de Março, chamado Comício da Central do Brasil, onde João Goulart anunciou a Reforma Agrária. Nessa mesma data, foi permitido aos sub-oficiais das três armas, o direito da participação política, de associação e de sindicalização. Até então, os cabos eram proibidos de casar, ter filhos e também não tinham direito ao voto.  

“Esse grupo da Aeronáutica, que foi punido pela terceira vez agora, nem eram parte dos chamados insurretos. O pessoal que estava à frente eram os marinheiros, como o cabo Anselmo. Quem eram esses moços da Aeronáutica? Eram operadores de aeroportos, eram funcionários quase que da burocracia. Por que eles foram punidos? Porque eles não aceitaram o golpe e, portanto, foram aposentados sem direitos. Suas carreiras foram extintas”, afirma.

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A decisão de anular a anistia desses cabos da Aeronáutica vai contra o fato de que qualquer ato administrativo do Estado, que beneficia um cidadão, só pode ser revogado em no máximo cinco anos. A isso é dado o nome de prazo decadencial. Ou seja, as anistias concedidas entre 2002 e 2004 não poderiam ser contestadas, uma vez que o caso foi ao Superior Tribunal Federal (STF), somente, em 2014. 

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“Em 2004, depois de muita peregrinação seus direitos funcionais, de militares, seus direitos hierárquicos foram reconhecidos. Eles passaram a ser reconhecidos como militares e receber seus proventos daqui para frente. Não os atrasados. Esses 40 anos foram perdidos. Se tinham entre 18 e 20 anos, 40 anos depois tinham 60 anos. Passaram-se mais 20, agora, e a ministra Damares casou, pela segunda vez, o direito desses militares”, critica.  

O entendimento do STF e da AGU

Segundo a Advocacia Geral da União (AGU), a Comissão de Anistia fez uma “leitura equivocada” da portaria de 64, levando ao que eles chamaram de “anistia indiscriminada de militares que foram ‘licenciados [da Aeronáutica]’ em razão tão somente da mera conclusão do tempo de serviço”. 

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No dia 16 de outubro de 2019, com maioria do STF, concordou-se, então, que “poderá a administração pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/64, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas”. O ministro Dias Toffoli foi o relator do caso.

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Seguiram o voto dele, os ministros Alexandre de Moraes; Luís Roberto Barroso; Ricardo Lewandowski; Gilmar Mendes; e Luiz Fux. Os ministros Edson Fachin; Cármen Lúcia; Rosa Weber; Marco Aurélio; e Celso de Mello foram contra. 

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Para o deputado Adriano Diogo um dos maiores equívocos é a não análise dos casos de forma individual, ou seja, os desanistiados sequer foram ouvidos sobre os seus casos. 

“O Supremo [Tribunal Federal] sugere uma interpretação e cada uma das pessoas que está nesse processo teria que ser ouvida e ter o devido amparo legal. A decisão do Supremo já é uma decisão enviesada, jamais poderia ter sido questionado o direito desses moços, mas já que foi questionado no grupo desses militares insurgentes, dos militares chamados legalistas da Aeronáutica, eles teriam que ter o total direito de defesa individualizado”, defende. 

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Para além disso, o deputado lembra que a maior parte dos que foram desanistiados estão recebendo, na verdade, uma espécie de aposentadoria. Por outro lado, o relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) pede a revisão da Lei da Anistia não para o caso de quem sofreu perseguição como os cabos, mas de 377 pessoas que cometeram torturas e assassinatos entre 1946 e 1988. 

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“Esse dinheiro era um direito, falando na linguagem dos civis, de aposentadoria, uma aposentadoria tumultuada, porque eles ficaram 40 anos sem receber seus proventos. 60 anos depois, ela reedita a vingança. Em uma interpretação equivocada. Vale para todos os militares? Não. Só para esse grupo de Aeronáutica, que deveria ter o direito de defesa”, afirma.

Edição: Lucas Weber

 

fonte: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/21/desde-o-governo-temer-quem-foi-anistiado-nao-recebeu-diz-analista-sobre-ditadura

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