“Não podemos separar a ordenação de mulheres da história de sexismo da Igreja”

Em uma conferência na Fordham University, em Nova York, em 1996, Avery Dulles, SJ abordou aquelas que ele via como as principais objeções à carta apostólica do Papa João Paulo II de 1994, intitulada Ordinatio sacerdotalis, sobre a inadmissibilidade das mulheres ao sacerdócio católico.

A conferência foi publicada na revista Origins (vol. 25, n. 45, datada de 02-05-1996), intitulada “Gênero e sacerdócio: examinando o magistério” e foi reimpressa na revista America em 2001.

Para marcar o 25º aniversário desse artigo, a revista America, 16-09-2021, pediu que Julia Brumbaugh, professora de Estudos Religiosos na Regis University, em DenverColorado, respondesse ao texto.

O artigo completo de Dulles está disponível em inglês aqui.

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em sua defesa da Ordinatio sacerdotalis, que declarou que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”, Avery Dulles, SJ enumerou os argumentos para se aceitar a proibição da ordenação de mulheres como bíblica, tradicional e teologicamente correta, apesar de uma série de objeções teológicas sérias. Esses argumentos merecem ser revisitados, porque as questões em jogo falam de coisas que estão no cerne da questão: sacramentos, tradição e salvação.

Ao ler o artigo de Dulles 25 anos depois, lembro-me da reflexão do grande eclesiólogo dominicano cardeal Yves Congar: você pode condenar uma resposta falsa, mas não uma pergunta real. Para Dulles, a questão da ordenação de mulheres foi feita e respondida muitas vezes, e foi respondida definitivamente de modo negativo pelo magistério.

Mas as perguntas sobre a plena participação das mulheres na vida da Igreja foram realmente respondidas? A pergunta foi sequer ouvida em todas as suas dimensões?

A tensão teológica aqui está no ponto crucial em que a antiga prática de um clero exclusivamente masculino – que existia em contextos sociais e eclesiais nos quais a subordinação e a inferioridade das mulheres eram amplamente assumidas – existe agora em um contexto onde a Igreja claramente ensina que as mulheres não são inferiores ou naturalmente subordinadas aos homens.

Embora superficialmente a questão sobre a ordenação de mulheres tenha sido feita e respondida, ela raramente foi feita nesse novo contexto em que a plena dignidade humana das mulheres é afirmada e defendida sem reservas.

 

Doutrina e autoridade

 

Em seu artigo, Dulles trata a história das mulheres na Igreja como aquela em que a visão histórica predominante de que as mulheres devem ser subordinadas aos homens não modelou problematicamente a prática das estruturas da Igreja ao longo dos séculos.

Embora ele rejeite o sexismo como um mal que deve ser combatido, de acordo com o magistério pastoral dos séculos XX e XXI, ele não aceita os argumentos de que o sexismo se enredou na prática da ordenação de forma a poder distorcê-lo. Estudiosos católicos que se questionam sobre as mulheres na Igreja frequentemente têm argumentado que o ensino da Igreja e o tratamento às mulheres mostra que o pecado do sexismo é muito mais profundo do que Dulles reconhece.

No próprio legado teológico de Dulles, há ampla evidência de que questões como essas, que interrogam os muitos contextos e motivações que moldam as nossas práticas e ensinamentos, não são apenas apropriadas, mas também adequadas à tarefa teológica. Por exemplo, em 1976, em uma palestra intitulada “O teólogo e o magistério”Dulles disse:

“Ficou evidente que aqueles que estão em posições de poder eclesiástico são naturalmente predispostos a aceitar ideias favoráveis aos seus próprios interesses de classe. Papas e bispos, portanto, tendem a falar de uma forma que realce a autoridade de seu cargo. O leitor atento deve levar isso em consideração ao interpretar e avaliar os documentos oficiais.”

Nesse discurso, Dulles criticou uma compreensão da doutrina e da autoridade que reduzia o papel dos teólogos ao exporem o ensino recebido dos bispos. Em consonância com a prática teológica que moldou o Concílio Vaticano IIDulles argumentou que os teólogos não são meramente os porta-vozes dos bispos e que têm uma esfera de competência própria, baseada em seu trabalho como estudiosos; de fato, ele explora a ideia de que eles formam um magistério que, junto com o magistério dos pastores, atua de “formas complementares e mutuamente corretivas” a serviço da Igreja.

Travar esse diálogo entre o magistério dos pastores da Igreja e o dos teólogos da Igreja é obra de toda a Igreja, que vive no poder do Espírito Santo. Esse Espírito não é recebido exclusivamente por meio das estruturas formais e institucionais da hierarquia, mas é dado a toda a Igreja e a cada um dos batizados.

Afirmar essa realidade requer uma imaginação que inclua o Espírito que trabalha com ousadia nas comunidades, emergindo e transformando os corações dos fiéis comuns e soprando sobre todo o mundo. Esse Espírito abre os nossos corações a um amor cada vez maior e mais amplo, revela os nossos fracassos (passados e presentes), possibilita o verdadeiro arrependimento e abre caminho para um futuro ainda a ser construído. O Espírito e a Palavra cocriam a Igreja.

Vivemos dentro do mistério do amor envolvente do Deus Trinitário e do desejo do nosso florescimento; e em cada época aprendemos e crescemos, mesmo quando tropeçamos, falhamos, esquecemos e aprendemos de novo. Alimentados pelas Escrituras e pelos sacramentos, pela oração e pelos dons do Espírito Santo, mas também pela abundância da realidade criada e pela compaixão e solidariedade com os nossos muitos próximos, os cristãos são chamados repetidamente a estarem abertos ao discernimento da chegada do reino de Deus, que está no meio de nós ontem, hoje e sempre.

Se a Igreja, que vive no poder do Espírito Santo e na memória de Jesus, aguarda a sua plenitude, nunca é suficiente argumentar apenas contra aquilo que foi feito no passado. O projeto pastoral e teológico pleno deve perguntar: o que Cristo no Espírito está fazendo agora? O que Deus está nos chamando a ser agora e no futuro?

Vivemos em um momento histórico em que, guiados pelo Espírito Santo, está nascendo o reconhecimento da plena igualdade das mulheres. Há muito trabalho a ser feito para desemaranhar o sexismo das nossas ideias e modos de sermos humanos juntos.

Para esse trabalho, precisamos da memória da amizade e da intimidade de Jesus com as mulheres, incluindo a sua confiança em Maria Madalena para ser a primeira a receber e a testemunhar a sua ressurreição. Precisamos ouvir profundamente uns aos outros para saber como o sexismo prejudicou e limitou a todos. E precisamos que nossas imaginações estejam abertas ao Espírito Santo para que possamos nos tornar, juntos, uma Igreja em que o sexismo – e a correspondente realidade da subordinação das mulheres – seja impensável.

 

Igualdade, complementaridade e subordinação

 

Ao trazer à tona esse compromisso de imaginar uma Igreja curada de todo sexismo, volto-me à metáfora no cerne da resposta teológica oferecida por Dulles (e outros) para restringir a ordenação aos homens. Os defensores de um clero exclusivamente masculino insistem que as mulheres e os homens estão em pé de igualdade diante de Deus e que a discriminação injusta contra as mulheres deve ser combatida e superada.

As mulheres não são excluídas da ordenação por causa do sexismo, argumentam eles, mas por causa da própria natureza da Eucaristia. O padre, argumenta Dulles, não apenas transmite as palavras da Eucaristia como um mensageiro, mas está in persona Christi – um ícone do próprio Cristo, o esposo, voltado à sua esposa, a Igreja, no amor. Apenas um homem, escreve Dulles, pode ser apropriadamente esse ícone.

Essa explicação tropeça por duas razões. Ela toma uma bela metáfora bíblica e a restringe ao torná-la literal. Além disso, ela reinscreve a subordinação das mulheres e a superioridade dos homens, mesmo que a tradição mais ampla tenha ensinado com clareza crescente a plena igualdade de todos os seres humanos perante Deus.

 

Linguagem metafórica e Deus

 

Segundo a famosa frase de Santo Agostinho de Hipona, “se você entendeu, então o que você entendeu não é Deus” (“si comprehendis non est Deus”). A imagem que Dulles e outros usam para demonstrar que a restrição da ordenação aos homens é apropriada é a de Cristo, o esposo, voltado à Igreja, sua esposa, o que é uma metáfora. Jesus nunca foi um esposo. Ele não era o amante de ninguém. Esse não é um problema a ser superado, mas a condição da humanidade que fala de Deus. Alcançamos, mas não agarramos. Nenhuma imagem, ícone ou metáfora; nenhuma palavra humana, mesmo a mais antiga e venerada, contorna essa limitação.

A metáfora do esposo e da esposa como uma imagem do encontro divino-humano é antiga. O profeta Oseias a usa, e muitas interpretações do Cântico dos Cânticos situam Deus ou Cristo como o esposo e a Igreja ou a amada como a esposa. Encontramos a imagem em Efésios e em toda a tradição monástica europeia medieval.

Papa João Paulo II favoreceu isso ao falar e ao escrever sobre as mulheres, o casamento e a Igreja. Essa metáfora ilumina poderosamente a intimidade, o amor apaixonado e o anseio que caracterizam o amor de Deus pelo povo de Deus, o amor de Cristo pela Igreja e a necessidade humana de Deus. Mas é e continua sendo uma metáfora.

linguagem metafórica atua no movimento entre a semelhança e a diferença, com o propósito de ver algo de uma nova forma. A tradição cristã usa a metáfora dos amantes para explorar o anseio que a alma humana tem por Deus e o desejo de Deus por nós.

No entanto, como Susan Ross argumentou na revista America (“Deus pode ser um esposo?” [disponível em inglês aqui]) e em outros lugares, essa metáfora se baseia em uma imagem das relações entre homem e mulher em que a pessoa feminina está profundamente subordinada à masculina; o esposo dá, e a esposa recebe.

Em uma teologia da relação divino-humana, é correto imaginar a criatura como totalmente dependente do Criador em relação à sua vida. Por exemplo, em seus sermões sobre o Cântico dos CânticosSão Bernardo de Claraval explorou essa imagem do amante e da amada. Ele entendeu que Cristo era o amante que chamava, e o ser humano era a amada que respondia.

A questão aqui é que a rica metáfora do esposo e da esposa ressoa porque abre as nossas imaginações de maneiras inovadoras. Deus não está longe de nós, mas irresistivelmente próximo. Deus nos busca, chamando os nossos nomes.

A profundidade do nosso anseio será mais do que respondida pelo nosso Criador. Isso não significa que Deus é um “homem” e que os seres humanos são todos “mulheres”, e isso não significa que as mulheres e os homens têm naturezas separadas (enquanto Deus e os seres humanos sim).

 

Iluminando um mistério

 

O argumento de que os homens podem ser um ícone de Cristo na Eucaristia e de que as mulheres não podem, por causa de suas naturezas diferentes, chega perigosamente perto da divisão entre homens e mulheres e da separação das mulheres em relação a Cristo, cuja natureza “masculina” não é compartilhada pelas mulheres.

Se tomarmos essa imagem literalmente – prescrevendo a realidade concretamente, em vez de iluminar, fragmentariamente, um mistério – poderemos imaginar que as mulheres e os homens estão em lados diferentes de alguma grande divisão. Em uma história mais ampla que ensina a subordinação das mulheres e em uma cultura em que o trabalho e a dignidade das mulheres são frequentemente subestimados ou negados, esse perigo é real. No entanto, tal separação que colocaria as mulheres fora do abraço salvador da encarnação é e sempre foi contrário à fé.

Com São Paulo e na fé, as mulheres podem e dizem: “Estou crucificado com Cristo, e já não sou eu que vivo: é Cristo que vive em mim. Esta minha vida humana, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gal 2,19-20). Os corpos das mulheres fazem parte do corpo de Cristo. A história e a tradição cristãs estão repletas de mulheres que são iluminadas pela luz de Cristo. A grande companhia dos santos e santas dá testemunho disso.

Cristo, por meio do Espírito Santo, está neste momento curando os nossos corações partidos e nos acompanhando enquanto lutamos para desfazer os legados do sexismo (entre os muitos outros males aos quais devemos resistir). Para que a teologia e a prática da ordenação e do ministério sejam credíveis, então a obra que Dulles se esforçou para fazer – compreender mais profundamente o mistério da presença de Cristo na Eucaristia – deve continuar.

Mas essa obra deve ilustrar a cada passo a plena humanidade de cada pessoa. Argumentos que fracassem em questionar as formas pelas quais a tradição cristã foi distorcida pelo pecado ou que se baseiam em imagens que reforçam a subordinação das mulheres são inadequados à obra evangélica à qual todos somos chamados.

 

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/612973-nao-podemos-separar-a-ordenacao-de-mulheres-da-historia-de-sexismo-da-igreja

 

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