É preciso indignar-se (o caso das TVs que se vendem)

“É preciso indignar-se” (Querida Amazônia, nº 15) com algumas Redes de Televisão de inspiração católica!
 
Desde que foi revelado o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, vinha sempre confrontando os pronunciamentos feitos naquela reunião com a Constituição Federal, fazendo-nos refletir como tais pronunciamentos feriam nossa Lei Maior.
 
Hoje, sinto-me na obrigação de comentar os pronunciamentos de outra reunião com o “presidente” do Brasil, acontecida de 21 de maio. Desta vez, não com ministros do governo, mas com padres diretores das chamadas redes de televisão de inspiração católica, com a participação de deputados federais que se dizem católicos, que foram os idealizadores desta reunião virtual.
 
Um dos pedidos mais explícitos foi feito pelo padre Welington Silva, da TV Pai Eterno, ligada ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO). Disse ele: “estamos precisando mesmo de um apoio maior por parte do governo para que possamos continuar comunicando a boa notícia, levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar realizando e fazendo pelo nosso povo”. Perguntemo-nos: o que este padre chama de “aquilo de bom que o governo” realiza e faz?
 
O padre e cantor Reginaldo Manzotti, da Associação Evangelizar é Preciso, com rádios e TV próprias, cobrou agilidade e ampliação das outorgas e destacou o contraponto que os católicos podem fazer para frear o atual desgaste na imagem de Bolsonaro e do governo. Uma TV de inspiração católica deve se submeter, por dinheiro, a fazer este papel ridículo de “frear o atual desgaste da imagem” do governo?
 
O empresário João Monteiro de Barros Neto, da Rede Vida, afirmou que “Bolsonaro é uma grande esperança”. Perguntemo-nos: esperança de que João Monteiro? 
 
No Brasil, há nove emissoras de inspiração católica de TV, geradoras de conteúdo: Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte, Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar – as três últimas ligadas ao movimento da Renovação Carismática Católica. As primeiras (Aparecida, Nazaré, Imaculada, Horizonte) não participaram da videoconferência. As quatro últimas participaram (Pai Eterno, Rede Vida, Canção Nova, Século 21 e Evangelizar).
 
Parabéns às TVs de inspiração católica que não aceitaram ser subornadas: Aparecida, Nazaré, Imaculada e Horizonte.
 
Vou escrever aqui em letras maiúsculas a minha primeira reação ao receber a informação do que estava sendo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo “Por verbas, TVs católicas oferecem a Bolsonaro apoio ao governo”: VERGONHOSO! MERCENÁRIOS!
 
Lembrei-me das palavras de Jesus no discurso sobre o Bom Pastor. Disse Jesus que o Bom Pastor vem para que todos tenham vida (cf. Jo 10, 10b) e o Mal Pastor, o Mercenário vem para roubar, matar e destruir (cf. Jo 10, 10, 10a). 
 
Outra cena do evangelho que me veio imediatamente à mente foi a passagem de Jesus no Templo de Jerusalém. João relata que no templo Jesus encontrou os que vendiam bois, ovelhas e pombas e os cambistas em suas bancas. João diz ainda que Jesus fez um chicote com cordas e expulsou todos do templo e disse: “Não façais da Casa de meu Pai um mercado” (cf. Jo 2, 13-22). Imaginemos Jesus entrando naquela reunião e ouvindo estes “padres” se vendendo ao governo, fazendo de nossa fé católica um mercado, pedindo dinheiro e prometendo apoiar o governo.
Em Nota de Esclarecimento, emitida na noite do sábado, 06 de junho, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por meio de sua Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação, juntamente com a SIGNIS Brasil e a Rede Católica de Rádio (RCR), associações de caráter nacional que reúnem as TVs e rádios de inspiração católica do Brasil, informam que “não organizaram e não tiveram qualquer envolvimento com a reunião entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, representantes de algumas emissoras de TV de inspiração católica e alguns parlamentares”.
Diz, também a Nota da CNBB: “Recebemos com estranheza e indignação a notícia sobre a oferta de apoio ao governo por parte de emissoras de TV em troca de verbas e solução de problemas afeitos à comunicação. A Igreja Católica não faz barganhas. Ela estabelece relações institucionais com agentes públicos e os poderes constituídos pautada pelos valores do Evangelho e nos valores democráticos, republicanos, éticos e morais”.
 
Como bispo da Prelazia de Itacoatiara – Amazonas, venho solidarizar-me com a Comissão Episcopal para a Comunicação e com a Presidência da CNBB. 
 
Os redentoristas e os Jesuítas, também, emitiram notas, dizendo que os seus Religiosos presentes naquela reunião não foram enviados pelas Congregações. Os Redentoristas ligados à TV do Pai Eterno e os Jesuítas ligados à TV Século XXI. 
 
Espero que os Padres “desobedientes”, sejam religiosamente corrigidos, se retratem ou se tomem outras providências. O Cânon 823 diz que “para garantir a integridade das verdades da fé e dos costumes é dever e direito dos pastores da Igreja vigiar para que os escritos ou uso dos meios de comunicação social não tragam prejuízo à fé e à moral dos fiéis”.
 
Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV
Prelazia de Itacoatiara – AM
 
 
 

O mercado da fé

 

Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

O organismo político, ao utilizar-se da religião como forma de dominação popular, torna-se capaz de levar o povo a temer a desobediência do Estado como se fosse uma ofensa a Deus

A peça teatral Entre quatro paredes, do filósofo francês Jean Paul Sartre, coloca três personagens convivendo num ambiente fechado, sem espelhos. A única imagem que se pode obter de si próprio são os reflexos nos olhos dos outros. A trama se desenvolve nesse triângulo de disputa ferrenhas dos personagens pela composição de uma parceria que seja capaz de destruir o terceiro, isolando-o. Condenados a uma vida comum com identidades, hábitos e padrões sociais totalmente diferentes entre si, esses personagens vivem a contradição de vender uma imagem bem diferente daquilo que são na realidade. Como era o caso de Garcin, um escritor que manifesta aos outros uma sua imagem de herói e pacifista, quando na verdade havia cometido crimes além de ser um grande covarde.

Ontem, 06 de junho, circulou pela grande mídia e redes sociais, uma videoconferência realizada no dia 21 de maio, de Bolsonaro com proprietários – padres e leigos – de emissoras de televisão católicas. Foi uma reunião de negócios, *em nada republicana*, onde os padres e leigos empresários ofereceram o poder de “uma mídia positiva para o governo Bolsonaro”, como expressou o padre Reginaldo Manzotti em sua intervenção, em troca de investimentos governamentais em suas empresas. Dialeticamente, apesar de todo o mal que a covid-19 tem castigado nossas famílias brasileiras, em virtude do afastamento social ela vem possibilitar que tenhamos acesso a conteúdos gravados de fatos que estávamos impedidos de presenciar no passado, como esta mamata pleiteada pelos padres empresários.

Como na peça de Sartre, entre Bolsonaro e os Padres estão os Pastores (neopentecostais), todos disputando o Mercado da Fé. A organização religiosa que mais elegeu parlamentares em 2018 foi a Assembleia de Deus, cabendo a Universal o segundo lugar. Esta é uma das maiores empresas religiosas do país, possivelmente o mais representativo grupo neopentecostal brasileiro, com 6.000 templos e alguns milhões de fiéis engajados espalhados por todo o Brasil. Um dos braços de internacionalização desta organização é a TV Record, cujo CEO é Renato Cardoso, genro do presidente do Grupo Universal, Edir Macedo. Em sua luta contra uma Imprensa livre, Bolsonaro sabe a importância estratégica de ter em sua mão uma mídia venal, vinculada ao seu projeto de Poder, produzindo uma imagem positiva do seu governo em troca do Deus Dinheiro.

O pensador político italiano Nicolau Maquiavel, em seu minucioso estudo sobre os principados eclesiásticos e principados hereditários, já havia detectado que o objetivo de todo Príncipe (Governo) é o de reduzir seu povo à obediência. Em seus “Discursos” (publicados em 1531), analisa a Religião como ferramenta eficaz de dominação, explorando-a a partir dos seus efeitos práticos de despertar o MEDO e o AMOR dos cidadãos em relação aos chefes de Estado e ao status quo. Para o pensador, a religião ensina a respeitar e a obedecer regras políticas a partir do ensinamento religioso, assumindo tanto o procedimento coercitivo da disciplina e hierarquia militar, quanto o caráter persuasivo dos condicionamentos pedagógicos cívicos para a produção de pensamento único.

O organismo político, ao utilizar-se da religião como forma de dominação popular, torna-se capaz de levar o povo a temer a desobediência do Estado como se fosse uma ofensa a Deus, uma vez que o mandamento divino contém uma eficácia maior para submeter os humanos. Com o uso da religião a minoria dominante consegue a obediência necessária, garantido à comunidade política coesão e duração, porque a religião fundamenta-se no TEMOR DE DEUS. Portanto, enquanto para a minoria dominante a religião é um instrumento político, meio eficiente para submeter os dominados à obediência, para a maioria dos crentes ela representa e contém o TEMOR SAGRADO que os fazem respeitar os preceitos legais – reforma da previdência, reforma trabalhista, trabalho infantil, continência à bandeira estadunidense, liberação da violência armada, omissão dos dados da covid-19 etc. – como se fossem mandamentos divinos.

Como disse Maquiavel, a religião é a paixão útil que existe para alimentar o amor civil pelo Estado, mas não representa um patrimônio de verdade. Entre a verdade e a religião não há uma medida comum. Dominadores e dominados conhecem a religião de modo diferente: para o Príncipe ela é apenas útil; para o Povo ela significa a exteriorização de um mandamento divino.

De agora em diante vai ser muito interessante observar como Reginaldo Manzotti, a Rede Vida e outras personalidades midiáticas católicas se comportarão, por exemplo, em suas celebrações litúrgicas como em seus ensinamentos diários do evangelho de Jesus de Nazaré. Afinal, estarão declaradamente apoiando um Mito, em vez da Verdade. Por definição, o mito é uma ilusão, um ídolo, um bezerro de ouro; nesse caso uma ilusão bastante estratégica e rentável para os cofres católicos. Que o diga Judas Iscariotes.

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/o-mercado-da-fe/

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