Os talibãs

 

Por FLAVIO AGUIAR*

Uma hipótese para se entender a força resiliente dos talibãs no Afeganistão e no Paquistão

Para os analistas de geopolítica, o livro de Tim Marshall, Prisoners of GeographyTen Maps that Tell You Everything You Need to Know About Global Politics, é extremamente original, e necessário. Seu objetivo é expor e demonstrar, porque é sua tese, como o design político mundial, desde a Antiguidade até os dias de hoje, dependeu da configuração geográfica dos continentes, seus rios, montanhas, planícies e dos mares.

Tim Marshall é um jornalista britânico, agora com 62 anos, que trabalhou durante pelo menos 25 deles para uma série de mídias de primeira linha nos quatro cantos do mundo – exceto, pelo que pude verificar na sua biografia, na América Latina. Ou pelo menos, neste quadrante do mundo, a sua frequência foi menor do que em outros, o que se reflete, como exporei, no texto.

Este livro em foco – de que existe uma excelente versão para crianças[1] – procura reunir uma reflexão abrangente sobre sua experiência como analista e testemunha da política internacional durante as últimas décadas do século passado e as primeiras deste, mergulhando em profundidade do passado histórico.

Ao invés da praxe habitual, de começar pelas positivas, começarei pelas negativas, que são relativamente poucas, depois passando aquelas, que são muitas.

A sereia geográfica

A primeira negativa me faz glosar o título, Prisioneiros da geografia. Acontece que o autor também se mostra um “prisioneiro da geografia”. Ou seja, parece um tanto encantado com sua tese, a de que a geografia do terreno, dos rios e dos mares, determinou e ainda determina predominantemente as opções políticas dos dirigentes das etnias, dos povos, das nações, dos estados modernos e, portanto, o desenho da geopolítica, como afirmado no primeiro parágrafo desta resenha. A tese é esgrimida com muita informação e originalidade, mas peca por uma dose de exagero. Há uma leve mas insistente tendência a tornar natural aquilo que é fruto de tramoias e maquinações políticas, embora algumas destas também sejam expostas de maneira objetiva e impiedosa.

A América Latina

Segunda e última negativa desta resenha: a América Latina. Vê-se logo de saída que o autor demonstra muito menos familiaridade com ela do que com os outros continentes analisados: Europa, Ásia, África, partes da Oceania e até o Ártico, embora este não seja propriamente um continente, mas uma cada vez mais ameaçada calota de gelo com passagens abertas cada vez menos eventuais durante o ano.

Dou um exemplo. Ao analisar a constituição histórica do Brasil, o autor assinala as dificuldades econômicas impostas pelo relativo isolamento entre as diferentes regiões, e a problemática situação da floresta amazônica, santuário ameaçado e também terreno impróprio para a agricultura. Daí assinala a fertilidade das terras mais ao sul, depois do cerrado que cerca a floresta, assinalando que a colonização portuguesa e o subsequente Brasil ali se fixaram por 300 anos antes de começar a se expandir pelo resto do território. Ou seja, ele simplesmente remete ao limbo a ocupação açucareira do atual Nordeste e o ciclo do ouro nas Minas Gerais.

Assim mesmo, seu ponto de vista contrabalança, de modo instigante, aquela visão tradicional do Brasil “abençoado pela sua Natureza exuberante”, apontando as dificuldades históricas e geográficas de seus planaltos, escarpas alcantiladas e do litoral acidentado, que fez do futuro país, inicialmente, um aglomerado de arquipélagos com maior ligação com a metrópole do que entre suas “ilhas”.

Outro exemplo: o papel deletério do imperialismo norte-americano sobre a região é mencionado sim, mas de modo muito leve diante do seu peso histórico e esmagador de tentativas de libertar-se de seu círculo de ferro.

Passemos às positivas. Será impossível falar de todas. Citarei alguns exemplos.

Os talibãs

Começo por um assunto extremamente atual: como explicar a força resiliente dos talibãs no Afeganistão, onde estão prestes a retomar o poder? O livro de Tim Marshall oferece uma hipótese bastante verossímil. Em termos mais recentes (embora a origem desta história comece na Antiguidade) tudo começa com a formação do atual Paquistão, inventado pelos britânicos para resolver o imbróglio que criaram na Índia e em parte de seu atual entorno. Numa tentativa de acomodar as tensões intra etnias, povos e religiões, os britânicos instituíram uma divisão: grosso modo, a Índia para os hindus e o Paquistão para os muçulmanos, o que, na ocasião (logo depois da Segunda Guerra Mundial), provocou uma enorme e tensa migração de um lado para o outro da fronteira desenhada.

Desta forma, reuniram-se no Paquistão (depois declarado uma República Islâmica) seis etnias principais, sendo a maior a dos Punjabis (44,7% da população), seguida dos Pashtuns (15,4%) e dos Sindhis (14,1%). Historicamente o convívio entre estas etnias esteve longe de ser amistoso, muitas vezes não passando de uma cordialidade sob a qual prosseguiam vicejando antigas rivalidades. Também a o fato de que “Paquistão” significa pouco para estes grupos, mais afeitos a suas lealdades antigas do que à novidade de uma “nação moderna”, de modelo europeu.

Ocorre que os Pashtuns são a maior etnia presente no vizinho Afeganistão (44% da população), ocupando quase a metade de seu território, a partir da fronteira com o Paquistão. O próprio nome “Afegão”, que deriva, dizem os eruditos na matéria, da palavra sânscrita “Asvakan” (“Cavaleiros”), designava, historicamente, os Pashtuns. “Afeganistão”, também uma República Islâmica, reúne, a raiz “Afghan” com o sufixo “stan”, da línguas Pashto (dos Pashtuns) e Persa (dos Iranianos), que quer dizer “lugar dos”. “Afeganistão” = “Lugar dos Afegãos”, isto é, historicamente, os “Pashtuns”. E – surpresa? – os Pashtuns são a base étnica e cultural dos Talibãs, um movimento político/religioso que emergiu em 1994 da raiz “Deobandi”, uma corrente muçulmana Sunita de tendência tradicionalista em meio à guerra civil que opunha a maioria Pashtun ao regime sucessor dos comunistas apoiados alguns anos antes pela naufragada União Soviética. Este movimento religioso, de raiz antiga, foi ampliado e intensificado por atividades acadêmicas que criaram uma base vasta de jovens e fieis militantes de sua causa.

Durante o conflito com os soviéticos os futuros talibãs contaram com o apoio dos Estados Unidos e seus aliados (incluindo o Paquistão), de tal modo que agora se pode dizer, com segurança, que Washington, em sua “retirada”, que muitos no país abandonado preferem chamar de “traição”, está sendo humilhada pelo que ajudou a semear. Sem falar que no labirinto dos Pashtuns crescia o grupo da Al-Qaïda, liderado por Osama Bin Laden, também apoiado, inicialmente, pelos EUA, além da Arábia Saudita. Deu no que deu.

Fatores decisivos

Três fatores são ainda decisivos nestes conflitos “de muitos gumes”, como dizia colega meu, José Jorge Peralta, nos tempos de USP.

O primeiro: historicamente, os Pashtuns têm muito mais familiaridade com o terreno hostil do país do que qualquer forças invasoras, sejam as extintas soviéticas ou as dos Estados Unidos e seus aliados. O território afegão, com regiões predominantemente montanhosas e/ou desérticas, oferecendo extremos de inverno e verão, favorece os habitantes tradicionais contra quaisquer invasores.

O segundo: a fronteira com o Paquistão, com o território imediatamente vizinho ocupado também por Pashtuns, facilita o trânsito vai-vem dos Talibãs, que podem se refugiar e se re-municiar no lado paquistanês.

O terceiro fator é o próprio Paquistão. Embora pertença ao exclusivo clube das nações com armas nucleares, o Paquistão é um país de população empobrecida, envolto em conflitos amargos: com a vizinha Índia, com os dissidentes separatistas da Cashemira, além dos internos e das relações difíceis com seus aliados ocidentais. Pressionado por estes últimos, o governo paquistanês rompeu relações com os Talibãs e passou a considerá-los um grupo “terrorista”. Porém nada interessa menos a este governo do que agravar as tensões internas entre etnias e correntes muçulmanas cujo convívio é problemático, para dizer o mínimo. Na prática, isto quer dizer que o governo, sediado em Islamabad, cidade situada a pouco mais de 150 km da fronteira com o Afeganistão, tem pouco interesse em hostilizar os Pashtuns.

A força resiliente dos Talibãs mostra-se, assim, inexpugnável. A ONU, os Estados Unidos e seus aliados, o próprio Paquistão podem considerá-los um grupo “terrorista”. O fato é que eles dispõem de uma base social considerável tanto no Afeganistão quanto no Paquistão. Além disto, os Pashtuns têm uma presença significativa na Índia, nos Emirados Árabes Unidos, no Irã, até mesmo nos Estados Unidos, e uma presença menor em sete outros países dispersos pelo mundo.

A ação de britânicos e franceses

O exemplo explorado acima – os talibãs – expõe o papel do colonialismo/imperialismo britânico no mundo todo, em particular na África, no Oriente Médio e na Ásia, na semeadura dos atuais conflitos armados nas regiões que estiveram sob seu domínio. Seu papel e seu legado nefastos também se espalham por outras regiões, como a América Latina e a Oceania. Também contou com uma ajuda alheia: a dos Estados Unidos (com um estilo diferente), de outros países europeus, como a França, a Bélgica, a Alemanha, a Holanda e em escala menor, a Itália. Tiveram antecessores ilustres no colonialismo espanhol e português.

Porém os britânicos, com ajuda sobretudo dos franceses, se especializaram em retalhar, com suas linhas traçadas em mapas estendidos sobre uma mesa europeia, povos e geografias pelo mundo que dominavam, separando o que deveria permanecer unido e unindo o que deveria permanecer separado. Estas linhas não eram “arbitrárias”, pois atendiam a seus interesses geopolíticos, mas o eram em relação ao que retalhavam.

A linha Sykes-Picot

Um dos casos mais dramáticos destes recortes, que o livro de Marshall examina, é o da chamada linha Sykes-Picot no Oriente Médio. Entre o final de 1915 e o começo de 1916, em meio à guerra de trincheiras na Europa, dois diplomatas, o britânico Coronel Sir Mark Sykes e o francês François George-Picot, negociaram o acordo que resultou – depois de algumas negociações suplementares – no acordo que dividiu o Oriente Médio em duas fatias, diante do bolo do Império Otomano que se desmanchava.

Uma linha quase reta, diz a tradição que inicialmente traçada por Sykes, dividia a região desde Haifa, hoje um porto mediterrâneo de Israel, até Kirkuk, hoje no nordeste do Iraque, já próximo da fronteira com o vizinho Irã. Ao norte desta linha, o mando seria francês; ao sul, britânico. Desta linha, depois aceita pela Rússia (já envolta na rebeldia que levou à Grande Revolução) e pela Itália, decorreu a existência de países-estados de fronteiras criadas algo artificialmente, como Síria e Jordânia, Iraque e Kuwait, Líbano e a futura cereja do bolo para o que resta do antigo Ocidente, Israel. Também decorreu daí o status de refugiados em sua própria terra, em condições diferentes entre si, de palestinos e curdos.

A pizza de Vladimir Putin

Há outros casos em estudo, onde a geografia física impõe sua presença sobre as linhas traçadas em mesas de negociação. Um destes exemplos abre o livro. Diz Marshall que Vladimir Putin deve pensar todos os dias numa fatia de pizza. Esta tem uma forma triangular; e triangular é a forma de um mapa que começa na base larga dos Urais, uma das fronteiras entre a Ásia e a Europa, atravessa a planície russa, em cujo centro está a capital, Moscou, depois prossegue tendo ao norte os países bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia, ao meio a Bielo-Rússia, e a Ucrânia ao sul, chegando à ponta-fina da pizza, a Polônia. Daí para frente se estende outra região largamente plana, através do norte da Alemanha, da França, compreendendo a Bélgica e a Holanda, até o Oceano Atlântico.

Segundo Marshall, entre outros fatores é esta pizza que explica, por exemplo, o apoio inconteste de Putin a uma figura problemática mais útil para ele, como Lukaschenko, na Bielo-Rússia, e a decisão de re-anexar a Crimeia, quando o antigo Ocidente beligerante conseguiu derrubar um governo pró-russo em Kiev, na Ucrânia. O lado ocidental da Rússia está, por assim dizer, cercado pela geografia que, desde o Atlântico, não oferece qualquer obstáculo maior a forças invasoras. Além do fato de que a maioria dos portos russos, com exceção daqueles no Mar Negro, agora re-incluindo Sebastopol, na Crimeia, pertence bloqueada pelo gelo durante boa parte do ano.

A dura lição para Napoleão e Hitler

Penso que estes exemplos são suficientes, dentre muitos outros, para sustentar uma tese implícita no livro de Marshall, qual seja, a de que, mesmo numa época de drones e guerra nas estrelas, o fator decisivo no caso de um confronto armado ou simplesmente de contagem de forças, também além da aviação e da marinha, entre os fatores decisivos estão forças terrestres, portos, aeroportos, linhas de comunicação e abastecimento e o conhecimento e o domínio do terreno físico e humano onde tudo se decide.

Uma dura lição que abateu os esforços, tão diferentes entre si, de Napoleão e Hitler na Rússia. Invadir a Rússia a partir do Ocidente é uma coisa. Ocupá-la é outra. À medida que a ocupação avança, se distendem as linhas de comunicação e abastecimento. As dificuldades de sua revitalização terminaram provocando o colapso daquelas invasões, que enfrentaram, sobretudo no caso da segunda, uma tenaz resistência no terreno. No caso da Segunda Guerra Mundial, um fator que favoreceu os soviéticos foi o “atraso” de seu material bélico, sobretudo no terreno de blindados, diante da “tecnologia de primeira linha” dos alemães.

Os soviéticos, usando poucos e simples modelos, tinham mais facilidade em produzi-los em massa e suas peças de reposição, do que os sofisticados aparelhos inovadores dos alemães, além de que estes tinham uma enorme dificuldade para fazer chegar os tanques e outros armamentos vitais e suas peças de reposição através de um terreno cada vaso mais hostil.

Mutatis mutandis, uma lição parecida atingiu tanto os soviéticos no passado, quanto os norte-americanos e seus aliados hoje no Afeganistão.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

Referência


Tim Marshall. Prisoners of GeographyTen Maps that Tell You Everything You Need to Know About Global Politics. Londres: Elliot & Thompson, 2019.

Nota


[1] Marshall, Tim. Prisoners of Geography. Our World Explained in 12 Simple Maps. Com ilustrações de Grace Easton e Jessica Smith. Londres: Elliot & Thompson, Simon & Schuster, 2019.

fonte: https://aterraeredonda.com.br/os-talibas/

 

A volta do Talibã e o Ocidente sem rumo

Fundamentalistas estão às portas de Cabul. Seu retorno assombra mulheres e dissidentes religiosos e políticos. Os EUA guerrearam 20 anos, gastaram US$ 2,3 tri e deixam metade da população na miséria. Haverá um sinal maior de seu declínio?

Apoiadores do Talibã carregam suas bandeiras brancas após a tomada da cidade de Spin Boldak, no sul do Afeganistão, fronteira com o Paquistão, país que apoia o movimento fundamentalista — 14 de julho de 2021

Por Patrick Cockburn, no Counterpunch | Tradução: Gabriela Leite

Em meados do mês passado, observei os talibãs percorrerem o norte do Afeganistão, tomando lugares onde eu havia estado pela primeira vez em 2001, no começo da guerra iniciada pelos Estados Unidos. Os combatentes talibãs se apoderaram da principal ponte para o Tadjiquistão, no Amu Daria, um rio que cruzei em uma balsa difícil de manejar, poucos meses depois de iniciado o conflito.

O último comando norte-americano da gigantesca base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, que havia sido quartel-general para 100 mil soldados, se retirou em plena noite, no início de julho, sem sequer informar a seu sucessor afegão, que disse ter sabido da evacuação final das tropas duas horas depois de ocorrida.

A principal causa da implosão das forças do governo afegão foi o anúncio do presidente Joe Biden, em 14 de abril de 2021, de que as últimas tropas norte-americanas abandonariam o país em 11 de setembro. Mas as alegações dos generais norte-americanos e britânicos, de que tudo isso está acontecendo muito rápido para que consigam preparar as forças de segurança afegãs para ficarem sozinhas, são absurdas – já que se passaram duas décadas sem que conseguissem fazer exatamente isso.

Ao findar da intervenção militar ocidental, vale a pena perguntar-se quais são as causas desse desastre humilhante. Por que tantos talibãs estão dispostos a morrer por sua causa, enquanto os soldados do governo fogem ou se rendem? Por que o governo afegão em Cabul é tão corrupto e disfuncional? O que aconteceu com os 2,3 trilhões de dólares gastos pelos EUA tentando – e falhando em – vencer uma guerra em um país que continua miseravelmente pobre?

De maneira mais geral, por que isso que foi apresentado como uma vitória decisiva pelas forças anti-Talibã, apoiadas pelos EUA, vinte anos atrás, se transformou nesta derrota?

Uma das respostas é que o Afeganistão – como o Líbano, a Síria e o Iraque – não são países onde a palavra “conclusivo” deva ser usada para qualquer vitória ou derrota militar. Vencedores e perdedores não emergem, porque há muitos envolvidos, dentro e fora do país, que não podem se dar ao luxo de perder ou de ver o inimigo vencer.

As analogias simplistas com o Vietnã, em 1975, são enganosas. O Talibã não tem nada parecido com o poderio militar do exército norte-vietnamita. Além disso, o Afeganistão é um mosaico de comunidades étnicas, tribos e regiões, sobre as quais o Talibã lutará para governar, aconteça o que acontecer com o governo de Cabul.

A desintegração do exército e das forças de segurança afegãs acelerou o ataque do Talibã, que enfrentou pouca resistência e conseguiu obter ganhos territoriais espetaculares. Essas mudanças rápidas de sorte no campo de batalha no Afeganistão são tradicionalmente geradas por indivíduos e comunidades que mudam rapidamente para o lado vencedor. Famílias enviam seus jovens para lutar pelo governo e pelo Talibã, para garantir segurança. Rendições rápidas de cidades e distritos evitam retaliação, enquanto a resistência prolongada geralmente leva ao massacre.

O padrão era semelhante, em 2001. Enquanto Washington e seus aliados locais na Aliança do Norte alardeavam sua vitória fácil sobre o Talibã, os combatentes deste voltavam ilesos para seus vilarejos ou cruzavam a fronteira com o Paquistão para esperar por dias melhores. Isso aconteceu quatro ou cinco anos depois, quando o governo afegão já tinha feito o suficiente para desacreditar a si mesmo.

A grande força do Talibã é que o movimento sempre teve o apoio do Paquistão, um Estado com armas nucleares com um poderoso exército, uma população de 216 milhões e uma fronteira de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Os EUA e o Reino Unido nunca admitiram verdadeiramente que, a menos que estivessem preparados para enfrentar o Paquistão, não poderiam vencer a guerra.

Outros pontos fortes do Talibã são um núcleo de comandantes e combatentes fanáticos e experientes, com raízes na comunidade pachtun, que representa 40% da população afegã. Um coronel paquistanês que comandava tropas pachtuns irregulares, do outro lado da fronteira com o Afeganistão, me questionou uma vez sobre os esforços americanos e britânicos “para conquistar corações e mentes” no sul do Afeganistão, fortemente pachtun. Ele acreditava que as chances de sucesso eram baixas, pois, segundo ele, a experiência o ensinou que uma característica central da cultura pachtun é que “eles realmente odeiam os estrangeiros”.

A propaganda sobre a “construção da nação” por ocupantes estrangeiros no Afeganistão e no Iraque sempre foi paternalista e irreal. A autodeterminação nacional não é algo que possa ser fomentado por forças estrangeiras, quaisquer que sejam suas supostas boas intenções. Elas invariavelmente levam em conta seus próprios interesses em primeiro e último lugar, e a confiança do governo afegão nas tropas norte-americanas e britânicas o deslegitimou aos olhos dos afegãos, afastando-o suas raízes na sociedade afegã.

As vastas somas de dinheiro disponíveis com os gastos estadunidenses no país produziram uma elite cleptocrática. Os Estados Unidos gastaram 144 bilhões de dólares em desenvolvimento e reconstrução, mas cerca de 54% dos afegãos vivem abaixo da linha da pobreza, com renda inferior a 1,90 dólares por dia.

Um amigo afegão que já havia trabalhado para a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) me explicou alguns dos mecanismos de como a corrupção pôde florescer. Ele disse que as autoridades humanitárias norte-americanas em Cabul consideram muito perigoso visitar pessoalmente os projetos que estão financiando. Em vez disso, preferiram permanecer em seus escritórios fortemente protegidos, assistindo a fotos e vídeos para acompanhar o andamento dos projetos pelos quais estavam pagando.

Vez ou outra, mandavam um funcionário afegão como esse meu amigo para ver o que estava acontecendo na obra. Em uma visita a Kandahar para monitorar a construção de uma planta de embalagem de vegetais, ele descobriu que uma empresa local semelhante a um estúdio de cinema cobrava uma taxa para tirar fotos convincentes do trabalho em andamento. Usando extras e um pano de fundo adequado, eles conseguiam mostrar os funcionários em um galpão separando cenouras e batatas, embora tal instalação não existisse.

Em outra ocasião, o funcionário da ajuda humanitária afegã descobriu evidências de uma fraude, embora desta vez houvesse poucas tentativas de ocultá-la. Procurou em vão por uma granja que recebia farto financiamento, mas que não existia, perto de Jalalabad. Em seguida, se reuniu com os proprietários, que apontaram que era um longo caminho de volta a Cabul. Interpretando isso como uma ameaça de assassinato, caso os denunciasse, não disse nada aos superiores e pediu demissão logo em seguida.

A ajuda estrangeira realmente construiu escolas e clínicas, mas a corrupção corroeu todas as instituições governamentais. Na linha de frente militar, isso significa soldados “fantasmas” e guarnições de postos avançados ameaçados que foram deixados sem comida e munição suficientes.

Nada disso é novo. Visitando Cabul e outras cidades ao longo dos anos, percebi que o Talibã tinha apoio limitado, mas que todos viam os funcionários do governo como parasitas a serem contornados ou subornados. Em Cabul, um próspero corretor de imóveis – que normalmente não simpatiza com mudanças radicais – me disse que era impossível para um sistema tão saturado de corrupção “continuar sem uma revolução”.

Ao invés disso, o fracasso do governo permitiu ao Talibã acreditar que pode retornar ao poder dentro de um ano. Essa perspectiva assusta muitas pessoas. Qual será, por exemplo, a resposta da minoria de 4 milhões de hazaras, que são xiitas de religião e próximos do Irã? No início deste ano, as bombas em Cabul mataram 85 meninas e professores hazara quando saíam da escola. Como em 2001, a guerra eterna no Afeganistão está longe do fim.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *