Cezar Britto fala à Conferência Nacional dos Advogados, democracia, Constituição e direitos humanos

DISCURSO XX Conferência Nacional dos Advogados (6/3/2013)

É com grande honra e alegria que me dirijo à advocacia e à sociedade civil brasileira, nesta abertura solene da XX Conferência Nacional dos Advogados. É este o principal evento público que a OAB realiza, e é tradicionalmente um espaço de liberdade e reflexão.

Esta Conferência, especificamente, além de seu rico temário, marca a celebração de três datas históricas: os 20 anos da Constituição de 1988, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o cinqüentenário da primeira Conferência Nacional dos Advogados, realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 1958. Essas Conferências representaram um novo ciclo na história das relações sociais e políticas da OAB. Numa assembléia sem distinções nem graus de jurisdição ou hierarquia, revitalizaram – e continuam a revitalizar – nossa instituição, contribuindo para consolidar sua unidade.

Têm sido também instrumento vital na consolidação de nosso papel histórico como tribuna da sociedade civil brasileira – papel a que o Estatuto da
Advocacia deu conteúdo jurídico, nos obrigando a lutar pela defesa das instituições jurídicas, da Constituição, do Estado democrático de Direito, da justiça social e dos direitos humanos.

E esse papel temos honrado, ao longo dos 78 anos de nossa história. Sempre que as causas da cidadania estiveram em jogo, a OAB lá estava, em defesa delas. A história não é estática, finita ou previsível. Tampouco evolui pelo simples impulso do tempo. Não! A história é vibrante, pulsa em variadas direções – rebelde, indisciplinada, desafiadora. E é contada e recontada de múltiplas formas.

Destrói certezas, edifica e demole muralhas, faz pó de paradigmas que depois, qual fênix, podem até renascer mais fortalecidos.

Grandes verdades restaram ruínas diante da História. A queda do muro de Berlim fez ruir a utopia de um mundo com igualdade, mas sem liberdade. A implosão do Templo de Wall Street, por sua vez, desnudou a farsa de que o liberalismo econômico é sinônimo de liberdade. Não pode haver liberdade, sem justiça social. A história destruiu os pilares do comunismo e do capitalismo, acusando-os de nunca terem privilegiado a solidariedade, não terem praticado o que pregaram, pois o ser humano jamais foi a razão de ser de suas ações, jamais esteve no centro de suas decisões.

O lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, da Revolução Francesa, resta inconcluso, perante a História, exatamente em face do desprezo dos governantes pelo quesito fraternidade.

O Brasil e esta Conferência comemoram, hoje, o triunfo da geração que, vinte anos atrás, escreveu, com a caneta da cidadania, uma nova Constituição Federal, belíssima página de nossa História.

As palavras do inesquecível Ulysses Guimarães, no memorável 5 de outubro de 1988, bem refletem o espírito daquele momento, que hoje buscamos evocar e perpetuar.

Entre outras preciosidades do discurso com que a promulgou, de intensa atualidade, destaco esta, que deve figurar como permanente advertência aos defensores da democracia:

“Quanto à Constituição, discordar, sim. Divergir, sim. Descumpri-la, jamais.
Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho
maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade,
mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.

A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.”

A História está mais uma vez a nos desafiar. Os paradigmas são outros, não mais os que atestam a vitória formal da Democracia.

Não mais os ideais que inspiraram a sexagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não mais a necessidade de inserir no ordenamento jurídico nacional o mandamento supremo da liberdade, a indispensável regra da igualdade e a sábia língua da fraternidade.

Não, isso já asseguramos formalmente vinte anos atrás. Nosso desafio é fazer valer o que efetivamente conquistamos. É constitucionalizar o Brasil. E é isto o que mais se ouvirá nesta Conferência, doa a quem doer, ofenda a quem ofender. Esse é o papel da advocacia brasileira.

Constitucionalizar o Brasil é fazer com que a soberania, a cidadania, a dignidade do ser humano, os valores sociais do trabalho, o meio ambiente, a previdência social, o acesso livre à informação e o direito à vida sejam efetivamente observados. É lutar para erradicar a pobreza e a marginalização, combatendo a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais, reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

É promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, abolindo o trabalho infantil, o trabalho escravo e a opressão à mulher.

É ampliar o acesso à Justiça, fortalecendo a inclusão social, fazendo-a eficaz no combate à corrupção e à impunidade. É cumprir a tarefa do Estado, de que todos tenham acesso à Justiça. Defensores neles!

Constitucionalizar o Brasil é rejeitar a absurda proposta de emenda constitucional n° 12, que, eternizando o pagamento dos precatórios, legitima o calote da dívida pública, leiloa o Poder Judiciário, zomba da fome do povo brasileiro e estabelece um dos mais autoritários instrumentos à disposição do governante de plantão.

Constitucionalizar o Brasil é conter os especuladores do ensino, com suas faculdades de fim de semana, a profanar o legítimo sonho de ascensão social pelo saber de milhares de estudantes.

A OAB, quanto a isso, congratula-se com o Ministério da Educação, que há mais de um ano desautoriza a criação de cursos de direito no Brasil e suprimiu mais de 120 mil vagas nesses estabelecimentos de péssima qualidade. É um bom começo, mas ainda não é tudo.

Constitucionalizar o Brasil é afirmar que nós temos direito à memória histórica, à verdade, seja qual for, pois não confundimos anistia com amnésia, nem muito menos confundimos tortura, que é crime de lesa-humanidade, imprescritível e abominável, com crime político.

Não há anistia para a monstruosidade da tortura! Constitucionalizar o Brasil é lutar por uma reforma tributária mais justa e distributiva, desonerando as folhas de pagamento e as atividades produtivas, para tributar as grandes fortunas e a fome insaciável do capital especulativo.

Constitucionalizar o Brasil é pôr fim à farra das medidas provisórias, que profanam o papel do Legislativo e concentram poder nas mãos do Executivo.

Constitucionalizar o Brasil é fazer valer uma profunda reforma política, em que essa atividade não mais seja confundida com politicagem, corrupção ou esperteza – a “politicalha”, de que falava Ruy Barbosa.

Constitucionalizar o Brasil é defender a Amazônia da cobiça internacional; é reafirmar que o pré-sal é nosso, assim como as águas e riquezas minerais de nosso subsolo.

Constitucionalizar o Brasil é não aceitar que portaria de delegado ou regimento interno de tribunal, ainda que do Superior Tribunal de Justiça, valha mais do que a Lei Republicana.

Constitucionalizar o Brasil é implantar, finalmente, um novo relacionamento Cidadão/Estado, sendo o cidadão o mais importante bem jurídico
tutelado.

Advogadas e advogados, estudantes de Direito, Cidadãs e cidadãos, Quando o pleno do Conselho Federal escolheu o tema desta Conferência, o Brasil começava a caminhar por trilhas perigosas.

Os princípios, direitos e garantias individuais da Constituição, que acreditávamos intocáveis, estavam sendo apontados, por diversos setores da magistratura, do Ministério Público, da polícia, como empecilhos, penduricalhos dispensáveis na garantia da segurança do Estado.

Começava-se a relativizar o princípio da dignidade da pessoa humana como razão de ser do Estado – dentre eles, o princípio da presunção de inocência, assim como o do direito de defesa, fatores de equilíbrio na relação processual. Secundarizava-se até mesmo o direito a um processo justo, público e transparente.

Não raro, a lógica miliciana, minoritária, absorvida por aqueles setores estatais, sustentava a teoria de que a eficiência do processo se mede pela quantidade de holofotes que a ordem judicial possa atrair.

Agia-se como se o combate ao crime fosse um espetáculo televisivo, novela em que o vale-tudo acaba não valendo nada.

Os excessos, na seqüência, passam a ser a própria notícia, servindo de base para anular processos, desviar a atenção sobre os corruptos e ainda, de quebra, gerar indenização a ser paga pelo erário. Pelo cidadão-contribuinte.

Quinze minutos de fama que nos custam tanto e por tanto tempo. Custam- nos a absolvição dos corruptos. Custam-nos o descrédito das instituições. Custam-nos o Estado de Bisbilhotice que criminaliza a todos, estabelecendo bizarra competição para saber quem grampeia mais, quem bisbilhota mais.

O Estado democrático de Direito é incompatível com a lógica do Estado Policial, segundo a qual princípios, direitos e garantias fundamentais, conquistados com sangue, suor e lágrimas, ao longo da história da humanidade, atrapalham o combate ao crime.

Essa a lógica perversa imposta ao mundo – e ao Brasil – pela lamentável Era Bush, com a sua absurda teoria de que o combate do crime deve-se fazer a qualquer preço, o que gerou a supressão de liberdades civis e fez proliferar prisões clandestinas, tortura, quebra do direito à defesa e seqüestros.

O resultado foi a violação sistemática a direitos humanos e ao princípio da soberania e auto-determinação dos povos.

Graças a Deus nossa geração começou a reagir. A eleição de personalidades como Barak Obama, para a Presidência dos Estados Unidos, e do brasileiro Cançado Trindade, para a Corte Internacional de Justiça, em Haia, são sinais alentadores. Guantânamo certamente não resistirá.

É: aqui e alhures, essas e outras lógicas tortuosas começam a perder fôlego. E não poderia ser diferente. A conquista do Estado democrático de Direito, foi uma longa, lenta e penosa construção humana, cujos benefícios já foram testados e atestados em séculos de história.

Somente dentro das regras democráticas, observando-se os seus ritos e procedimentos, poderemos combater o crime, em qualquer instância que se apresente – desde o mais prosaico delito até o mais sofisticado golpe do colarinho branco.

Outro alento: não obstante as vozes que pregam que o Estado pode investigar, denunciar, processar e julgar, sem que o cidadão tenha o direito de defesa, a Lei 11.767, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, garantindo a inviolabilidade dos escritórios de advocacia, foi finalmente sancionada.

Assim também esperamos que o seja o projeto de lei, já aprovado na Câmara dos Deputados, que torna crime a violação às prerrogativas do advogado de livremente defender o cidadão.

O mesmo esperamos que ocorra no que se refere à procedência do pedido de edição de súmula vinculante para que os advogados tenham, como o exigem a Constituição e a Democracia, livre acesso aos autos, pois não se pode conviver com processos secretos para o próprio investigado.

A presença recorde de advogados, estudantes de Direito e cidadãos nesta vigésima Conferência – ressalta sobretudo o ambiente de união e fraternidade que ontem constatamos, na abertura festiva que aqui tivemos – espelhou-se essa demonstração do fantástico patrimônio humano de que dispomos. Nós somos fraternos e podemos cobrar fraternidade de quem quer que seja.

Demonstra o quanto estamos certos na sustentação desses princípios. A advocacia continua sendo referência vital nas questões que envolvem a cidadania brasileira.

Continua a nos dizer que, sem o reconhecimento do direito de defesa, o cidadão fica órfão no seu relacionamento com o aparelho estatal. Torna-se presa fácil do autoritarismo, da arrogância, da perseguição, da má-fé, da incompetência ou dos equívocos do Estado e de seus agentes.

Mostra-nos que o Estado democrático de Direito é absolutamente incompatível com o Estado Policial.

Mostra-nos que, sem o direito de defesa, resta ao cidadão a fé improvável de que todos os carcereiros, agentes penitenciários, policiais, membros do Ministério Público, magistrados, secretários de segurança pública, ministros da Justiça, governadores e presidentes da República são infalíveis, incorruptíveis, isentos de paixão política ou incapazes de arroubos autoritários.

Nesta Conferência, podemos ainda demonstrar que a garantia da inviolabilidade não é privilégio para o advogado. Prerrogativa não é privilégio; é
instrumento para cumprimento de missão – no caso da advocacia, a missão é a de defender o cidadão, não apenas o advogado.

Para nós, advogados, inviolabilidade é um dever, que deve ser observado, sob pena, inclusive, de resultar em falta ética e disciplinar.

O privilégio, repito, é do cidadão, que não pode ter a sua defesa espionada, bisbilhotada ou vasculhada por aqueles que são encarregados da investigação, acusação ou julgamento.

Sabemos que consolidar esses conceitos, mostrar a cilada que é a “Justiça de resultados”, é tarefa difícil – e que não pode ser delegada a terceiros. Nossa ação ou omissão, qualquer que seja a face da moeda, tem conseqüência imediata. E a decisão do presente certamente influenciará o futuro.

É bem verdade que, em suas relações externas e globais, a humanidade tem sido submetida a opções equivocadas de tiranos. Mas, felizmente, o mundo não caminha apenas com as pernas de seus líderes e respectivas organizações.

Há o contraponto da cidadania, que hoje luta por construir novo habitat para o ser humano.

Temos esperança: É cada vez maior o número de tribunais com jurisdições internacionais, assim como aumentou a quantidade de crimes considerados atentatórios à causa da humanidade.

A escravidão, que já foi prática tida como legal, inclusive em nosso país, é hoje crime de lesa-humanidade. Não mais se admitem teses estapafúrdias, que vigeram sob o manto da legalidade, como a de que negros e índios não tinham alma.

Já não são aceitos como métodos processuais válidos – e o foram por muitos séculos – o paredão, a inquisição e a tortura.

A pobreza deixou de ser questão de economia interna dos países para tornar- se o grande desafio mundial. As fronteiras, que há muito se abriram para o capital, agora começam a se abrir para o social.

Como se vê, apesar de todos os pesares, a humanidade busca caminhos alternativos para consolidar seu futuro. Equilibra-se num fio de navalha, entre a barbárie e a civilização.

O triunfo depende de ação. Quando o povo renuncia ou negligencia o seu dever de julgar e escolher, a injustiça começa nele próprio e se espraia como uma doença por todo o tecido social.

A verdade histórica não pode ficar trancafiada em tonéis de carvalho, envelhecida, para que num futuro improvável seja liberta.

Até um excelente vinho, se conservado além do prazo, transforma-se em azedo vinagre. Deixar para o futuro – remoto e imprevisível – a missão de sanear erros e omissões de nosso passado é comodidade absurda e conivente, que a história já nos está
cobrando.

O futuro escreve-se no presente. O tempo é agora. E o povo é simultaneamente escritor e personagem do livro do tempo. Tempo e Povo são os
senhores da História.

A História que queremos, e vamos contar, para esta e as futuras gerações, é aquela escrita com a belíssima coloração dos princípios, direitos e garantias fundamentais, que tornam a Constituição de 1988, com todas as suas deficiências, um patrimônio da cidadania brasileira, que temos o dever de preservar.

A XX Conferência Nacional dos Advogados está aberta. Vamos constitucionalizar o Brasil. Mãos à obra!

Muito obrigado.

Cezar Britto

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