Décadas de estrangulamento financeiro abriram, na Saúde Pública, brechas crescentes para terceirização, descoordenação e precarização. Processos corroem atendimento público e relação com profissionais. Será preciso enfrentá-los
Publicado 13/08/2021 às 19:32
Adriano Massuda e José Gomes Temporão, entrevistados por Antonio Martins | Imagem: Charles Alston
Que nenhum dos problemas do SUS será sanado, sem multiplicar os recursos empregados no sistema, é consenso. Chega a ser espantoso que tenha havido, nas últimas décadas, expansão dos serviços, e mesmo inovações de grande relevância – a Estratégia de Saúde da Família, por exemplo, foi implantada progressivamente, a partir de 1994 –, em meio à exiguidade de dinheiro. Mas num cenário de superação do neoliberalismo fiscal, para o qual o projeto Resgate se volta, não bastarão mais verbas: será preciso corrigir problemas estruturais. Em 12 de agosto, dois grandes pensadores e militantes da Saúde Pública discutiram um dos mais relevantes.
O ex-ministro José Gomes Temporão (hoje na Fiocruz) e o ex-secretário da Saúde de Curitiba Adriano Massuda (atualmente professor da FGV) abordaram a privatização que corrói, por dentro, o Sistema Único de Saúde. Falaram sobre a onipresença de hospitais e centros de diagnóstico privados. Denunciaram a entrega, a particulares, da gestão das próprias unidades de atenção primária (porta de entrada e interface central da Saúde Pública com os usuários). Trataram da captura, por interesses privados, dos próprios equipamentos públicos (por meio da indicação partidária e clientelista de seus gestores). Apresentaram, para cada déficit, alternativas concretas. O investimento intenso, em especial na atenção básica, é o início de tudo. Mas precisa ser complementado com um plano de carreira nacional para os profissionais da Saúde; com modelos de gestão e contratação contemporâneos (os atuais são dos anos 1950); com um novo protagonismo público, mesmo na relação com os prestadores privados; com novo federalismo transformado– capaz de manter a autonomia dos municípios e, ao mesmo tempo, de impedir a fragmentação do sistema. Uma tentativa, sempre limitada, de resumir o que disseram vem a seguir:
> Primeiro passo: lutar contra o subfinanciamento:
Em debate anterior, Francisco Funcia e Grazielle David haviam apresentado os mecanismos por meio dos quais o SUS vem sendo subfinanciado há décadas – e passou a ser desfinanciado, após o golpe de 2016. Mas o diálogo de ontem trouxe dados concretos sobre os resultados desta política. Entre os países que mantêm sistemas universais de Saúde, França e Alemanha investem, neles, entre US$ 3 e 5 mil anuais por cidadão, apontou Massuda. No Brasil, acrescentou, são US$ 800 per capita – entre 3,5 e 6 vezes menos. Temporão mostrou como, mesmo em termos relativos, o Estado brasileiro despreza a Saúde. Brasil e Inglaterra investem, ambos, o equivalente a 9% do PIB em Saúde (ponderando renda per capita e população, significa que gastamos apenas 1/6 dos britânicos). Mas aqui, além disso, apenas 48% do dispêndio é feito no setor público – contra mais de 80% lá.
Concebido no período de ascenso das lutas sociais, que vai da segunda metade dos anos 1970 até a Constituição de 1988, o SUS expressou, também, um desejo de igualdade. Mas sua institucionalização deu-se no período seguinte – marcado, ao contrário, por concentração de renda e restrições ao gasto social. Esta contradição, já haviam lembrado Sônia Fleury e Juarez Guimarães, é a raiz principal das deficiências da Saúde Pública.
> Hospitais privados, caminho da desarticulação:
O subfinanciamento do SUS e os benefícios do Estado brasileiro ao setor privado, criaram uma deformação. A grande maioria dos atendimentos hospitalares oferecidos pela Saúde Pública é feita em estabelecimentos privados: Santas Casas, outras instituições “filantrópicas”, hospitais empresariais. É pior ainda com os exames diagnósticos, realizados, quase em sua totalidade, fora da rede própria do SUS.
Como agir diante deste quadro. Temporão crê que seria irracional abandonar a rede privada, que foi construída com recursos públicos (financiamentos generosos da Caixa e do BNDES) e que formou e reúne, de qualquer modo, capacidade e inteligência. Mas o inadmissível, diz ele, é que o SUS não mantenha com esta malha uma condição de protagonismo. A Saúde pública limita-se a contratar serviços. Não define padrões, não estabelece metas, não exerce controle. Age como mero cliente. E paga mal – consequência do subfinanciamento. Os hospitais privados, a que recorre, servem, costumeiramente, a outros contratantes, com os quais firmam acordos menos precários.
A melhora da rede hospitalar implica, é claro, investimento direto do SUS. Mas Temporão e Massuda concordam que é possível manter, mesmo com a medicina privada, relações muito mais favoráveis. É preciso que a Saúde Pública comande também os particulares que contrata. Há exemplos de como agir. Segundo Temporão, o Instituto Nacional do Câncer, órgão do SUS, mantém uma rede de cerca de 130 hospitais oncológicos – públicos, filantrópicos e privados – que atende com qualidade, por ser efetivamente coordenada.
> Reverter a terceirização das Unidades Básicas:
Há anos, e a partir de São Paulo, a terceirização chegou à rede de atenção básica à Saúde. Aqui o dano é mais grave, porque são estas unidades que estabelecem e coordenam a relação permanente entre o SUS e a população. No entanto, cerca de 10% a 12%, calcula Massuda, já são geridas por Organizações Sociais (OSs), cuja lógica não é a da Saúde pública. A prefeitura paulistana chegou ao cúmulo de entregar a terceiros não apenas as próprias UBS, mas a própria Central de Regulação de Leitos, responsável por uma gestão estratégica da qual o SUS jamais deveria abrir mão.
A invasão da atenção básica pelas OSs foi, continua Massuda, a solução simplória para um problema complexo. As formas de gestão adotadas na Saúde pública (e no Estado brasileiro em geral) estão ultrapassadas há muito. Datam dos anos 1950, quando o Brasil era majoritariamente rural e a estrutura estatal, pouco complexa. Para atualizá-las, é preciso determinação e, em certos casos, coragem para enfrentar e dirimir conflitos. Mas prevalece, ainda, o dogma ideológico segundo o qual o Estado não é capaz de dar este passo. Por isso, as OSs espraiam-se.
Temporão propõe, como alternativa, investir em “uma radical qualificação e expansão da Estratégia Saúde da Família” e nas redes que a articulam: Policlínicas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e SAMU. Seria, pensa ele, o caminho para que, antes de tudo, o SUS construa o que pode ser a espinha dorsal de um novo padrão de garantia do Direito à Saúde.
> Carreira nacional para os profissionais de Saúde:
Nas condições de subfinanciamento atuais, acrescentaram Temporão e Massuda, o SUS oferece pouco aos profissionais de Saúde – e exige deles bem menos do que deveria. A questão vai muito além dos salários. Não há, até hoje, por exemplo, uma carreira nacional para médic@s, enfermeir@s, psicólog@s e nenhuma das outras profissões que atuam na Saúde pública. As possibilidades de evoluir restringem-se, quando muito, a um município. Inexiste (ao contrário do que ocorre, por exemplo, na Petrobrás ou no Banco do Brasil) a possibilidade de prestar um concurso nacional, começar num posto remoto e, aos poucos, se for desejo, optar por uma localização mais central.
Em contrapartida, o Estado é frouxo ao cobrar responsabilidades. Os médicos, por exemplo, podem acumular dois empregos públicos e trabalhar ao mesmo tempo no setor privado. Nestas condições, é quase impossível criar vínculos e é tentador ter, no SUS, apenas uma fonte de renda a mais.
Temporão defende uma proposta que ele sabe ser polêmica. Acha que, como ocorre em outros países com sistemas universais, deveria ser vedado aos médicos acumular trabalho no SUS e no setor privado. Mas ele reconhece: é impossível dar este passo sem oferecer condições dignas de trabalho e carreira nacional.
> Não há futuro para a Saúde brasileira sem o SUS:
Medicina de dados, teleatendimento, biotecnologias. Há inúmeras transformações em curso, no cuidado com a Saúde. Seu sentido é incerto. Podem abrir caminho para condições inéditas de vida digna e bem-estar para as populações. Ameaçam, ao mesmo tempo, instalar um apartheid sanitário ainda mais profundo, ao restringir o acesso às novas tecnologias apenas à minoria capaz de pagar por elas. Mais uma vez, a disputa não se decidirá no terreno da técnica, mas no da política.
Também por isso, frisaram Massuda e Temporão, é preciso um SUS ampliado, fortalecido, capaz de assegurar que a Saúde Pública seja a de excelência – desmercantilizada e igualitária, mas ao mesmo tempo avançada e humana.
“SUS ou Medicina privada – quem será capaz para a Saúde integral dos brasileiros?”, perguntou Temporão em sua fala final. Basta comparar a riqueza e profundidade do diálogo, entre ele e Massuda, com a narrativa, cada vez mais rasa e marqueteira, dos defensores da saúde-mercadoria, para ter certeza da resposta.
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Nós, que amamos tanto o SUS…
…e desejamos transformá-lo. Dois cientistas políticos imersos nas lutas sociais sustentam: Saúde pode ser eixo de nova onda de construção de políticas públicas para desmercantilizar a vida. Para isso, é preciso um horizonte político de esquerda
Publicado 02/08/2021 às 19:28 – Atualizado 13/08/2021 às 18:01
Poderá o SUS – num novo cenário político, desenhado após a vitória sobre o fascismo – servir de referência para a construção de novas políticas públicas no Brasil e daquilo que alguns chamam de Estado Social no século 21? Se se espera que ele cumpra tal papel, como livrá-lo de seus déficits, entre os quais estão o financiamento inadequado, a captura de parte de seu fundo público pela medicina privada, os vazios assistenciais, os espaços de participação insuficientes – ainda que reais? E, mais importante: como reconvocar o espírito da luta pela Reforma Sanitária, sua atitude radical contra a desigualdade, as heranças coloniais e as misérias do capitalismo dependente – agora que uma nova “conjuntura crítica” se arma e ressurgem as chances de questionar uma hegemonia opressora?
Na noite de 2/8, os cientistas políticos Sônia Fleury e Juarez Guimarães enfrentaram por quase duas horas este feixe de questões complexas, em novo diálogo no âmbito do projeto Resgate. Intitulado O SUS foi reconhecido – e agora?, o encontro entre eles foi denso e provocador. Pode ser acompanhado na íntegra, no vídeo acima (uma transcrição está sendo preparada). Tentar resumi-lo, no espaço e urgência deste texto, seria temerário. Mas é possível destacar três das questões muito instigantes suscitadas por Sônia e Juarez. Por meio delas, o leitor terá alguma noção da riqueza do debate.
A audácia da Reforma Sanitária e os limites do SUS institucionalizado
Vale a pena tornar real um projeto ousado e profundamente transformador, quando as condições em que é possível fazê-lo deformarão a ideia original? O SUS, explicou Sônia, surgiu sob a marca desta contradição. Sua raiz é o movimento pela Reforma Sanitária,
que se articulou a partir de meados dos anos 1970. Sob pressão da ditadura, do AI-5 e da censura e repressão, um grupo de jovens militantes e pensadores formulou não apenas a ideia de um sistema sanitário, mas a de uma nova hegemonia política e cultural, que viam como capaz de transformar o país.
Seu projeto desafiava frontalmente uma sociedade marcada por desigualdades. Começava por propor, do ponto de vista conceitual, uma nova visão de Saúde – tida não mais como ausência de enfermidades, mas como a garantia do bem-estar, em seus múltiplos aspectos. E esta virada desdobrava-se num conjunto de princípios então revolucionários: atendimento universal (até então, tinham direito no INPS-Inamps apenas os trabalhadores formais), público (a ditadura já contratava hospitais privados), integral (relacionado à nova visão sobre Saúde) e descentralizado (em oposição à concentração de poderes buscada pelos militares).
Esta concepção – minoritária a princípio, mas muito capaz de dialogar com o ascenso das lutas democráticas – abriu caminho rápido. Ofereceu respostas ao declínio e queda da ditadura, ao colapso (inclusive financeiro) da velha estrutura da Saúde e à ebulição de lutas sociais que desembocou na Constituição de 1988. Mas – e aqui está uma singularidade brasileira – só pôde ser implementada em meio a limites férreos: os do neoliberalismo, então pujante, e os do sistema político brasileiro – elitista, arcaico e fisiológico.
Foi esta a dialética entre o movimento pela Reforma Sanitária e o SUS, narrou Sônia. O Sistema Único de Saúde não poderia ter existido sem as inúmeras concessões que marcaram sua instituição. Valeu a pena, avalia hoje a cientista política que ajudou a conceber a Reforma Sanitária. Três décadas depois, o SUS só pode ser transformado – porque está vivo. Mas as perdas não foram pequenas. “A partir de determinado momento, toda a riquíssima literatura sobre a Reforma acabou. Tratava-se apenas de ‘fazer aquela coisa funcionar’. Deixamos de ter uma práxis orientada por teoria crítica para fazer instituição, fazer democracia constrangida e limitada”.
Os compromissos e concessões da esquerda no poder
Por que não foi possível corrigir estas distorções nos treze anos em que a esquerda ocupou o governo? Juarez Guimarães vê, no período entre 2002 e 2016, a “aceitação de um pragmatismo limitante”. Sua crítica tem ainda mais relevo por se tratar de um intelectual que participou da construção do projeto petista – e que se mantém esperançoso no que pode ser um retorno de Lula, após as trevas do bolsonarismo.
“Os programas dos governos [do PT] afastaram-se do projeto histórico dos anos 1970 e 80”, diz ele. E acrescenta: “A aceitação dos limites impostos pela hegemonia burguesa foi ainda mais grave porque não se deu numa época de capitalismo guiado pelas ideias de um T.H Marshall, mas sob o tacão do neoliberalismo”. Faltou enxergar que, nesta fase, a oposição conservadora às lutas democráticas e socialistas vai muito além da teoria econômica. Friedrich Hayek, ícone desta época, “é acima de tudo um pensador político, para quem o essencial é liquidar a esfera pública e em torno deste objetivo é possível aliar-se inclusive a Augusto Pinochet”, prossegue Juarez – e a isso, a crítica da esquerda no poder foi sempre tímida e condescendente.
Sônia – que integrou o “Conselhão” – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – da era Lula vê, inclusive, uma tentativa de rebaixar as críticas, de aplainar um debate que foi muito mais rico na época da luta pela redemocratização. “No fundo”, diz ela, “aceitamos atuar nas franjas do neoliberalismo”.
As bases para uma possível virada
Nenhuma outra política pública, concordaram Sônia e Juarez, mantém tão acesa quanto o SUS – com todas as suas contradições e limites – a chama de um possível socialismo democrático brasileiro. Ela está viva no reconhecimento, agora majoritário entre a população, da importância da Saúde Pública. Também viceja na rede de ativistas e profissionais, vasta e capilarizada, que continua a defender os princípios da Reforma Sanitária. Mas como articular uma ampliação e aprofundamento do SUS com o renascer de uma luta mais ampla, pela transformação da sociedade brasileira?
Juarez crê que uma nova “conjuntura crítica” – semelhante à que Sônia identificou no curso da luta pela Reforma Sanitária – está se armando. Seus sinais vêm da crise do neoliberalismo, do enfraquecimento da hegemonia geopolítica dos EUA, do declínio, também no Brasil, da capacidade de criar consensos das classes dominantes.
Para ele, um SUS fortalecido poderia emergir de três pactos: com o povo brasileiro, a classe média e os profissionais de Saúde. O primeiro deveria contemplar a extensão do Programa de Saúde da Família para todo o território nacional e a identificação e resolução dos “vazios assistenciais” – as longas filas para consultas e exames, por exemplo. Também a aliança com a classe média precisaria estabelecer condições seguras para deixar os “planos de Saúde”: o Público como o sinal de excelência; a oportunidade de escapar do “duplo imposto” que significa desviar parte significativa do orçamento familiar para o custeio da medicina privada. O terceiro implica garantir salários dignos (“uma enfermeira arrisca a vida todos os dias na pandemia por pouco mais de um mínimo”, lembra o Juarez) e uma nova relação dos médicos com o serviço público.
Sônia Fleury fechou a noite aludindo ao Comum. Lembrou a emergência dos coletivos e da expressão “tamo junto”, transformada quase em bordão, nas periferias. Apontou este dado cultural como signo da possível luta contra o individualismo. Para ela, um novo projeto de país precisa circular pela democratização do Estado e por um novo feixe de políticas. Elas precisam assegurar o direito às Cidades, à Mobilidade, a uma Segurança não-segregadora, à Educação vista como formação ao longo de toda a vida e livre de formalismos, a uma nova relação com a natureza.
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Tanto melhor se o SUS – e, em especial, se os princípios que o originaram – puderem ser a espoleta que deflagrará esta busca por uma nova soberania popular.
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