A Amazônia agradece a Francisco por não esquecer seu sofrimento nesta época do Covid-19

Neste domingo, festa de Pentecostes, no final do Regina Coeli, o papa Francisco surpreendeu a todos ao lembrar, mais uma vez, “a Igreja e a sociedade na Amazônia, duramente provada pela pandemia”, enfatizando que “são muitos os contagiados e os mortos, também entre os povos indígenas, particularmente vulneráveis”. Em seu discurso, o papa disse que “por intercessão de Maria, Mãe da Amazônia, reço pelos mais pobres e indefesos daquela querida região”, pedindo “que não falte assistência médica a ninguém”, um direito de todos, que tem como princípio o fato de que é mais importante “cuidar das pessoas que são mais importantes do que economia“, porque, como ele enfatizou, “nós, pessoas, somos templo do Espírito Santo, a economia não”.

A reportagem é de Luís Miguel Modino.

As palavras do papa Francisco encontraram eco na Amazônia, tanto eclesialmente quanto entre os povos que habitam a região, dando origem a um sentimento de emoção e gratidão, como a REPAM coletou. A preocupação com a situação na Amazônia só aumenta, porque “nessas duas semanas devem acontecer os picos mais fortes nas comunidades indígenas”, de acordo com Patricia Gualinga, líder indígena do povo Kichwa de Sarayaku e uma das representantes dos povos na Assembléia Sinodal, que está entusiasmada ao ver que o Santo Padre “sente o clamor da Amazônia, que nestes tempos difíceis está sendo afetada com muita força”. A indígena equatoriana concorda com o Papa que devemos apostar “pela vida da humanidade, dos povos indígenas, pela defesa da Amazônia e não apenas pelas justificativas econômicas, argumentando que a economia é mais importante que a vida“.


 

O também líder indígena José Gregorio Díaz Mirabal, coordenador da COICA, que se referiu ao Papa como “irmão Francisco, querido amigo da Amazônia“, alertou-o de que o incêndio que queimou a Casa Comum foi acompanhado pela pandemia, que faz com que “seus filhos sejam infectados e morram sem a atenção dos Estados”. O coordenador da COICA, que também participou da Assembleia Sinodal, pediu ao Papa que fizesse “uma chamada de emergência mundial para buscar ação humanitária internacional para a Amazônia”. Dos povos afrodescendentes da Amazônia equatoriana, Selene Terán, enfatizou a necessidade de “todos nós podemos juntar as forças para que nossa terra, nossa Amazônia, possa sair adiante”, que deve ser vista “como o pulmão do mundo“, agradecendo ao Papa por sua preocupação com “quem sempre foram os mais abandonados e foram chamados de ‘quintal'”.

As palavras do papa Francisco também foram ecoadas na mídia amazônica. Do Putumayo, na Colômbia, Liverman Rengifo, camponês comunicador da Rede de Radiodifusores Comunitários do Putumayo colombiano – Cantoyaco, expressou “um grande sentimento de fraternidade, solidariedade e esperança ao escutar a mensagem do papa Francisco na luta sempre pela defesa dos necessitados, dos mais vulneráveis”. Segundo o comunicador, “trabalhar pela pessoa, em toda a sua integridade, nos afirma e reafirma no mandato de evangelização na Amazônia“, juntamente com “a luta pela defesa do bioma amazônico”.

Na esfera eclesiástica, a mensagem encontrou a resposta da vida religiosa, REPAM, de alguns bispos e do próprio cardeal Czerny, um dos secretários do Sínodo para a Amazônia. O cardeal recordou as palavras do Santo Padre, “ao Espírito Santo, que ilumina toda a Igreja, a sociedade e todas as comunidades, para que todos possamos responder com serenidade, discernimento e coragem à trágica situação de dor que vive a Amazônia e seus povos nessa pandemia”, insistindo que os governantes “tenham um coração sensível ao sofrimento dos povos e aos danos causados ao meio ambiente”. O subsecretário da Seção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, pediu a dedicação de quem faz parte da Igreja Amazônica para “responder com caridade e eficácia apostólica” e tornar realidade os 4 sonhos da Querida Amazônia, destacando “a importância de escutar a voz da Amazônia, movida pelo maior sopro do Espírito Santo no clamor da terra ferida e de seus habitantes”.

Do Celam, seu presidente, dom Miguel Cabrejos, agradeceu ao Papa por fazer a humanidade pensar na Amazônia, onde “muitos povos indígenas estão morrendo devido ao coronavírus”. O prelado peruano enfatizou que o Papa concentra “o fundamental na defesa da pessoa”, colocando “a saúde em primeiro lugar, depois a economia” e destacando que “os seres humanos são o templo do Espírito Santo, a economia não é”. O bispo emérito de Xingú, dom Erwin Kräutler, disse que ficou emocionado com as palavras do Papa, que “ama a Amazônia“, onde “senti o carinho dele para com a Amazônia”. Dom Erwin insistiu na importância de “que a mensagem do Papa seja transmitida aos governos, especialmente ao governo do Brasil”, e que “todo esforço deve ser para salvar as pessoas”.

Desde a vida religiosa, a presidenta da CLAR agradece ao Papa por repetir “o clamor de tantas pessoas que hoje na Amazônia veem suas vidas, saúde e cultura ameaçadas”. Para os religiosos, que afirmam continuar “com nosso povo”, hoje são dias para abraçar a dor, sentir desamparo e ver o autoritarismo que fecha o espaço para a vida. Nesta situação, a vida religiosa “não queremos e não podemos perder a esperança. É por isso que estamos comprometidos em defender a vida”, insiste a irmã Liliana Franco, agradecendo ao Papa por lembrá-los “com seus gestos e palavras de que nosso lugar como religiosos está no meio dos mais pobres”. E junto com isso “a nossa é a missão, a saída, a itinerância”, algo que está se tornando visível com a campanha “Amazônia Somos Todos“, que encontrou uma forte resposta.

O jesuíta Alfredo Ferro, de Letícia, na tríplice fronteira entre Colômbia, Peru e Brasil, enfatizou que “a Roma chegou o grito e o clamor dos mais de 150.000 infectados e mais de 8.000 mortos até hoje”. O coordenador do Serviço Jesuíta Pan-Amazônico se refere aos sonhos de Querida Amazônia e à necessidade de que “nossa economia tem que ser outra”, esperando que as palavras do Papa “sejam escutadas e ressoem com aqueles que tomam as decisões deste mundo”. Da Equipe Itinerante, María Eugenia Lloris, que afirma que “continuamos a defender os povos indígenas“, enfatizou a importância de defender a Amazônia “porque a vida do mundo depende da vida da Amazônia”. Nessa defesa da vida, a religiosa afirma que “há muitos missionários na linha de frente, lutando e defendendo o que falamos no Sínodo”.

REPAM também agradeceu ao papa Francisco por suas palavras, “que possam nos fortalecer nessa grande missão pela nossa Amazônia”, disse a irmã Irene Lopes, diretora executiva da REPAM-Brasil, que enfatizou que “o mais importante é cuidar das pessoas e não apenas da economia”, denunciando que “sabemos que muitas pessoas estão morrendo: pobresindígenasribeirinhos, estão morrendo sem nenhum atendimento”.

Partindo do profundo, sagrado e misterioso significado que o fogo tem em muitas culturas amazônicasMauricio López, Secretário Executivo da REPAM, agradeceu ao papa Francisco “por tornar explícito o chamado ao fogo da vida“, o que ajuda extinguir “os incêndios do desmatamento, exploração e violência diária sofrida pelos povos amazônicos hoje em meio à pandemia”. Essa pandemia provocou um incêndio “que queima e extingue muitas vidas de inocentes, dos mais vulneráveis, devido à falta de uma resposta adequada e explícita dos governos em meio a essa situação”, denunciou Mauricio. O Secretário Executivo da REPAM pediu a presença do Espírito Santo na cabeça e no coração “de todos os membros da Igreja, mulheres e homens que trabalham incansavelmente para defender a vida todos os dias”, referindo-se aos quatro sonhos da Querida Amazônia e “à aliança com os povos indígenas em defesa de seus territórios, seus direitos e suas vidas”, algo que ele espera que se torne mais forte.

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/599566-a-amazonia-agradece-a-francisco-por-nao-esquecer-seu-sofrimento-nesta-epoca-do-covid-19


Povos indígenas reforçam barreiras sanitárias e cobram poder público enquanto covid-19 avança para aldeias

 

Com mais de 70 povos indígenas já afetados pela covid-19barreiras sanitárias se multiplicam pelo país como forma de controlar o acesso às terras indígenas e diminuir contaminação.

A reportagem é de Renato Santana e Tiago Miotto, publicada por CIMI, 29-05-2020.

Os povos indígenas têm adotado medidas próprias para conter a chegada da pandemia do novo coronavírus nas aldeias. As barreiras sanitárias se multiplicam país afora como uma forma de controlar o acesso às terras indígenas e evitar ao máximo o contágio nas comunidades.

A atual gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai), por sua vez, entende que as barreiras são inapropriadas, chegando ao ponto de fazer ações contrárias a elas nas redes sociais. A sugestão é que os indígenas apenas fiquem em casa, ignorando as invasões territoriais promovidas por madeireiros, fazendeiros, caçadores e grileiros.

Ocorre que o órgão indigenista do Estado, enquanto criminaliza a autoproteção indígena, havia gasto até o dia 22 de abril pouco mais de R$ 1 milhão dos R$ 10,8 milhões enviados à Funai pelo governo federal para a proteção das aldeias ao novo coronavírus. Estes 10% foram usados para a compra de caminhonetes.

Em 28 de maio, segundo dados do Siop, o montante destinado ao combate à covid-19 aumentou para R$ 23 milhões, mas apenas 18% desse valor foi utilizado – cerca de R$ 3 milhões além do que já havia sido gasto com os veículos.

Também a Funai não apresentou nenhum plano emergencial e tampouco calendário de distribuição de cestas básicas, monitoramento e intervenções junto aos demais órgão do Poder Executivo para atender demandas nas bases, como a atenção aos indígenas em contexto urbano não assistido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Conforme levantamento do site De Olho nos Ruralistas, 23 povos indígenas levantaram barreiras sanitárias, em doze estados, até metade do mês de abril. O número aumentou desde então. A Rede de Monitoramento dos Direitos Indígenas de Pernambuco (Remdipe) lista barreiras sanitárias nas terras indígenas dos povos XukuruPankaráKambiwáKapinawáPankararuEntre Serras – PankararuTrukáPankará Serrote dos CamposAtikum e Fulniô.

“Cada povo tem uma forma diferente de fazer a barreira sanitária. Em alguns lugares há barreiras em algumas aldeias, em outras na aldeia inteira. Algumas aldeias são tão pequenas que só há uma entrada, então não listamos”, explica a antropóloga Lara Erendira Andrade.

No Ceará, os Tapeba e os Anacé, cujas terras estão localizadas no município de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, também ergueram bloqueios em seus territórios. Em Alagoas, os Xukuru-Kariri também fizeram barreiras e os Xocó, de Sergipe, aproveitaram a barreira para distribuir insumos sanitários ao povo. Na Bahia, os PataxóTuxá e os Tupinambá de Olivença sofreram críticas dos poderes locais, mas mantiveram as medidas de autoproteção.

Pelo menos cinco aldeias Pataxó da Terra Indígena (TI) Comexatibá estabeleceram barreiras de autoproteção, para impedir o fluxo de turistas, que mesmo sob a pandemia insistiam em cruzar o território indígena para acessar as praias da região. Na TI Barra Velha, os Pataxó também realizaram bloqueios em aldeias e estradas, preocupados com o crescimento dos casos nos municípios da região.

Barreira na TI Krahô-Kanela. (Foto: Wagner Katamy Krahô-Kanela)

No caso dos Tupinambá, desde o dia 20 de março os indígenas interditam as estradas BA-668 e BA-669 que dão acesso à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada entre os municípios de IlhéusBuerarema e Una, no litoral sul da Bahia. No caso da barreira sanitária interposta na estrada que dá acesso à aldeia de Serra do Padeiro, a polícia chegou a ir ao local para liberar a via à força, mas não obteve sucesso.

O mesmo ocorreu na TI Xakriabá, em Minas Gerais, onde uma ação da polícia militar desrespeitou a barreira erguida pelos indígenas em seu território. “Se essa epidemia chegar aqui, o Estado precisa ser responsabilizado, porque eles estão desrespeitando nossa organização contra o coronavírus”, cobrou o cacique Santos Xakriabá.

No Tocantins, os Krahô detiveram um carro com munições de arma de fogo numa das barreiras da TI Kraolandia, onde também denunciam a presença constante de invasores. Os povos Apinajé e Kraho-Kanela também estão entre os que realizam barreiras no estado.

“Na entrada do território, colocamos a icat xè xà, que é uma saia de palha grande, para evidenciar que a área estava fechada. Mas isso não foi suficiente. Então, colocamos uma corrente, está fechado. Só vamos à cidade de quinze em quinze dias, e quando vamos na rua, usamos máscara”, explica Wagner Krahô-Kanela, liderança da terra indígena localizada no município de Lagoa da Confusão.

“Colocamos a barreira para conscientizar especialmente quem vem de fora, para que se previna e não aconteça como já aconteceu na chegada deles [brancos]”, afirma Erileide Domingues, liderança Guarani Kaiowá da TI Guyraroka, no Mato Grosso do Sul. Em Caarapó, na reserva Te’yikue, os Guarani e Kaiowá também estão controlando o acesso de não indígenas com barreiras.

Bloqueio na TI Kraolândia, onde indígenas denunciam a presença de invasores e caçadores clandestinos. (Foto: povo Krahô)

Ausência de políticas públicas

Para Dinamam Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as barreiras sanitárias estão sendo feitas pela ausência do Estado, na medida em que o governo federal, mesmo antes da pandemia, despreza a proteção aos territórios indígenas com baixíssima execução orçamentária ou qualquer cuidado especial às populações que correm o risco de genocídio em caso de proliferação descontrolada da doença nas aldeias.

“A barreira sanitária é um dos instrumentos que traz uma certa segurança para a comunidade em termos de deslocamento, saber quem entra e quem sai. Isso por si só não combate o coronavírus. Precisa ter a comunidade seguindo as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde)”, analisa Dinamam.

“O que nos traz uma maior segurança da eficácia da barreira é que ela assegura que os indígenas permaneçam dentro dos territórios. Quem for sair passa informações e controla o fluxo de pessoas não desejadas nas comunidades. Serve de orientação”, explica o integrante da coordenação da Apib.

Dinamam defende que as barreiras poderiam servir para fazer testes em parceria com a Sesai. “Isso não acontece porque o governo não entende assim, ao contrário. Então temos de suprir a ausência do Estado que não tem plataforma de ação construída, plano não construído. As barreiras são mais uma medida ao alcance dos povos indígenas para amenizar esse impacto”, diz.

As barreiras têm servido também para ações de conscientização e educação sanitária. “As barreiras educam, passam as orientações da OMS e organizações indígenas. Proíbe e inibe a entrada de pessoas estranhas”, completa.

Barreira na reserva Te’yikue, em Caarapó, Mato Grosso do Sul. (Foto: Otoniel Guarani Kaiowá)

Funai transforma indígenas em problema para a sociedade

Para a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em parecer, a posição da Funai contrária às barreiras sanitárias conflita com a orientação da decisão do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que concedeu medida cautelar para vedar a circulação de qualquer campanha que sugira que a população deve retornar suas atividades plenas ou que expresse que a pandemia constitui evento de pouca gravidade.

O alerta da Funai contrários às barreiras sanitárias em estradas pelos indígenas “não reflete a realidade vivenciada nas aldeiasnão atende aos princípios constitucionais sobre os direitos indígenas e aos cuidados indispensável para evitar a disseminação da doença no interior das aldeias”, diz trecho do parecer.

No informe da Funai há um alerta para que os indígenas não realizem bloqueios nas estradas de acesso às aldeias, durante a pandemia do novo coronavírus, pois já havia suspendido as autorizações de entrada em terras indígenas no mês de março.

No entanto, acumulam-se notícias de que madeireiros, invasores de terras, pescadores e garimpeiros aceleraram o avanço sobre as terras indígenas sem nenhum constrangimento ou impedimento dos órgãos públicos.

“A notícia, disponível no site da Funai, demonstra, no mínimo, dubiedade com sua missão fundamentada na legislação brasileira. Este jogo de palavras ou tergiversação, inicialmente, não deixa de ser contraditório, pois busca publicizar que os indígenas, em plena pandemia que assola o país, estão promovendo bloqueios de estradas, comprometendo a circulação de pessoas e o abastecimento do país. E assim a Funai aponta as comunidades indígenas como sendo eventualmente responsáveis por parte dos problemas da sociedade envolvente”, analisa o parecer.

Para os assessores jurídicos do Cimi, “as populações indígenas encontram-se inseridas no grupo de risco da covid-19, a política de isolamento social deve ser reforçada, sendo incabível a Funai interferir na política de controle de acesso das aldeias adotada pelas comunidades indígenas, baseada na autonomia concedida pela Constituição Federal de 1988”.

O parecer lembra ainda que a Constituição reconhece aos indígenas sua organização socialcostumeslínguascrenças e tradições, competindo à União demarcar e proteger as terras tradicionais e os seus bens.

Enquanto boa parte das ações de proteção, conscientização e cuidado dependem da iniciativa das próprias comunidades indígenas, da ação de apoiadores e da disposição de servidores e equipes que trabalham sem os recursos necessários, a pandemia segue avançando de forma devastadora sobre as aldeias.

Segundo levantamento que vem sendo mantido pela Apib, por meio do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, 71 povos indígenas já foram afetados pelo novo coronavírus e pelo menos 147 indígenas faleceram em função da doença. O número é três vezes maior do que o registrado pela Sesai.

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/599548-povos-indigenas-reforcam-barreiras-sanitarias-e-cobram-poder-publico-enquanto-covid-19-avanca-para-aldeias


Coronavírus: “Não queremos outro genocídio indígena”, diz Crisanto Rudzö Tseremey’wá, da etnia Xavante

 

Levantamento da Coiab aponta que 731 indígenas foram infectados pela Covid-19 e 116 morreram, entre eles, um bebê da terra Marãiwatsédé.

A entrevista é de Marcio Camilo, publicada por Amazônia Real, 01-06-2020.

Em Mato Grosso, associações indígenas enfrentam diversos obstáculos para impedir a entrada do novo coronavírus nas aldeias. Entre eles, estão a falta de políticas públicas específicas e de planos de contingência mais robustos para combater a pandemia, além de projetos governamentais que incentivam fazendeiros, garimpeiros e madeireiros a invadirem terras indígenas.

Uma das organizações que está à frente desse trabalho é a Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), que foi concebida em 1999 para defender os direitos das 43 etnias do estado. A organização está presente em sete regiões: Cerrado/PantanalKayapó NorteMédio AraguaiaNoroesteXavanteVale do Guaporé e Xingu.

Crisanto Rudzö Tseremey’wá, da etnia Xavante, que atua como presidente da Fepoimt desde 2018, ressalta que garantir a assistência social e o acesso à saúde dos povos tradicionais tem sido um grande desafio no contexto da pandemia, principalmente pela descontinuidade de políticas públicas do governo federal voltadas para a estruturação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) nos estados. “Os distritos têm servido como apenas estágio de passagem para os médicos. Não há equipes fixas multidisciplinares preparadas para atender às especificidades de cada etnia”, disse em entrevista à Amazônia Real.

Crisanto diz que as políticas indigenistas de Bolsonaro têm incentivado o governo de Mato Grosso a emplacar projetos de lei na Assembleia Legislativa que flexibilizam o garimpo e as invasões. No entendimento da liderança Xavante, essas ações contribuem ainda mais para o avanço da pandemia. “Agora com as invasões, o vírus vem junto. Isso aumenta ainda mais a fragilidade dos povos indígenas, principalmente no bioma amazônico”.

A liderança também se preocupa com as aldeias próximas às cidades ou que possuem seus territórios cortados por rodovias, situações que podem facilitar a penetração do novo coronavírus. Nesses locais, a Fepoimt, junto com outros parceiros, tem feito um trabalho forte de prevenção, pois, segundo Crisanto, a atuação do governo federal não é suficiente. “Há aldeias que estão apenas a 20 quilômetros da cidade. É quase que inevitável a circulação de indígenas na cidade e a de não indígenas nas aldeias”.

Ele afirma que a ameaça da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tem que ser tratada como “perigo permanente”, principalmente pela vulnerabilidade imunológica dos povos indígenas brasileiros que, desde 1500, são acometidos por doenças externas, que já dizimaram muitas etnias. “Para mim, a Covid-19 não é diferente da varíola, do sarampo, da gripe e da caxumba, que mataram muitos dos meus irmãos. Não queremos outro genocídio”, alerta.

Um levantamento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que reúne a estatística da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, apontou 731 casos confirmados da Covid-19 e 116 mortes, de acordo com o boletim divulgado no último dia 25 de maio. Um dos povos mais afetados é o Kokama, de Amazonas, que já perdeu 51 pessoas, entre eles, nove lideranças. Entre os Xavantes são três casos confirmados e uma morte, de um bebê.

Fepoimt trabalha no mapeamento das terras indígenas mais vulneráveis e realiza uma campanha pela internet para arrecadar alimentos e produtos de higiene.

Rikbaktsa em expedição pelo território. (Foto: Ana Carolina de Lima/OPAN)

Eis a entrevista.

Quais territórios indígenas em Mato Grosso estão mais vulneráveis diante da pandemia e por quê?

Com certeza as mais vulneráveis são aquelas aldeias perto das cidades ou que têm rodovias que passam dentro das terras indígenas. Também estão mais expostas ao coronavírus povos que constantemente têm suas terras invadidas por fazendeiros, garimpeiros e madeiros.

Destaco aqui a Terra Indígena (TI) Sangradouro/Ponta Grande, na região Leste do estado, que abriga as etnias Bororo e Xavante, com um população de mais de 800 índios. O território é cortado pela BR- 070 e fica a questão de minutos de Primavera do Leste [cidade mais próxima das aldeias]. Muitos indígenas ficam esperando ônibus na BR. Eles podem trazer a Covid-19 para as aldeias. Também tem muitas missões missionárias que visitam a TI. A Fepoimt está muito preocupada com a situação, tanto que nossos conselheiros elaboram panfletos na língua Xavante para conscientizar os indígenas sobre os riscos da pandemia, como se prevenir e fazer o auto recolhimento.

Outra preocupação nossa é em relação aos territórios no bioma amazônico, nas regiões norte e noroeste, onde há a maior concentração de povos indígenas no estado do Mato Grosso. Lá, povos como os ManokiMundurukuApiakásKayabi e Rikbaktsa são constantemente ameaçados por invasões de terras e construção de usinas hidrelétricas. Com a chegada da pandemia, essa fragilidade aumentou ainda mais, pois agora os invasores, como madeireiros, garimpeiros e fazendeiros, além dos danos ambientais, podem também trazer o vírus para as comunidades. Outra preocupação ali, principalmente com os povos do [rio] Juruena, são as construções de usinas hidrelétricas que têm afetado drasticamente o cotidiano e autonomia alimentar deles. Ali, eles estão na mira do desenvolvimento nacional.

Indígenas Manoki (Irantxe) lutam por suas terras tradicionais. (Foto: Markus Mauthe/Greenpeace/2006)

Recentemente, a Fepoimt, o Instituto Centro de Vida (ICV), a Internacional Rivers e a Operação Amazônia Nativa (OPAN) soltaram uma nota técnica contra o Projeto de Lei Complementar (PLC) no. 17/2020 do governo do Mato Grosso enviado à Assembleia Legislativa. Por que esse projeto é grave para os povos indígenas?

O projeto permite a sobreposição do CAR [Cadastro Ambiental Rural] em territórios indígenas que estejam em processo anteriores à homologação, que é a última etapa do processo de regularização da TI. Se esse projeto for aprovado pelos deputados estaduais, haverá derramamento de sangue, pois os indígenas não vão sair de seus territórios originários, onde estão os sítios arqueológicos. Esse projeto, na prática, viabiliza as invasões de terra indígenas por meio de fazendeiros que querem aumentar suas terras para a expansão agrícola, além de aumentar as grilagens e os conflitos agrários. Quando você olha as sobreposições no mapa, não é uma coisa que vai beneficiar o trabalhador, são terras grandes, a partir de 400 hectares. Esse PL visa grandes módulos. O projeto segue a mesma lógica da normativa da Fundação Nacional do ÍndioFunai [IN 09/2020], que também está se ausentando de suas responsabilidades na garantia dos direitos aos povos originário. É uma ação nacional coordenada, pois o governador [de Mato Grosso] Mauro Mendes (DEM), apesar de arrumar desculpas para as perguntas dos jornalistas, sabe muito bem o que está a fazendo.

A situação não está nem um pouco fácil para os povos indígenas. Estamos enfrentando uma pandemia diante de ataques sistemáticos aos nossos direitos e a democracia de uma maneira geral. A Funai foi criada para fazer o equilíbrio das políticas indígenas dentro do governo federal. Ela só existe por causa dos indígenas. Mas atualmente ela tem sido usada para fazer valer as promessa de Jair Bolsonaro aos interessados em explorar as terras indígenas.

O Dsei Xavante é responsável pelo atendimento à saúde de uma população de 22 mil pessoas. Como está a estrutura do distrito? Há logística para os médicos se deslocarem às aldeias?

Não culpo quem está na ponta, os coordenadores distritais [Dseis] que têm se esforçado muito. O problema é o governo federal que não conhece os problemas indígenas de perto e não investe o necessário para estruturar a saúde indígena.

Por exemplo, o TCU [Tribunal de Contas da União]. Tem o dinheiro lá disponível para questão indígena, mas a lei não trata das especificidades das áreas que precisam de investimento. Os profissionais têm que ser bem pagos. As estradas vicinais que levam às aldeias precisam ter estrutura, assim como a frota de carros do distrito precisa estar equipada e completa para atender às demandas. Por mais que o gestor tenha boa vontade, ele está engessado, pois o TCU não prevê esses tipos de gastos.

Os departamentos de Saneamento Básico e Edificação do Dsei Xavante são muito precários. Não existe uma política pública consistente para estruturar esses setores. No cenário da pandemia, os indígenas precisam ter acesso à água para fazer a higiene, e como que faz isso diante de muitas aldeias com falta de saneamento? Com a chegada da Covid-19 essa situação precária se agrava ainda mais.

Apesar da situação parecer controlada em Mato Grosso, sabemos que existe uma subnotificação dos casos, e, além do mais, o perigo é permanente por causa do nosso sistema imunológico que não é adaptado para essas doenças que vêm de fora. Assim foi em épocas passadas… Para mim, a Covid-19 não é diferente da varíola, do sarampo, da gripe e da caxumba, que mataram muitos dos meus irmãos. Não queremos outro genocídio dos povos indígenas.

Crisanto Rudzö Tseremey. (Foto: Arquivo Pessoal)

E as equipes que atendem os Dseis? Estão preparadas para o enfrentamento à pandemia?

atenção básica nas aldeias ainda é muito precária. O Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas só foi criado depois de 10 anos da elaboração do SUS (Sistema Único de Saúde). Durante a Constituição de 1988. Era para ser uma grande rede de atendimento aos povos indígenas, considerando os aspectos geográficos, demográficos e culturais, mas isso nunca se efetivou. E o que vemos com Bolsonaro é o agravamento do desmonte das políticas indígenas.

Nos Dseis de Mato Grosso não há continuidade dos trabalhos, pois as equipes constituídas por médicos e enfermeiros são volantes, ou seja, não existem equipes multidisciplinares e muitos distritos ficam sem profissionais.

As equipes multidisciplinares são fundamentais para trabalhar com a necessidade específica de cada etnia. Elas são formadas de acordo com os dados epidemiológicos e não de uma maneira genérica como tem ocorrido. Para os povos Xavantes do Cerrado, por exemplo, é necessário um médico endocrinologista porque lá tem muitos casos de diabetes. Muitos dos médicos estão lotados nos municípios e eles não vão ter uma dedicação exclusiva aos indígenas, o que torna a situação dos distritos ainda mais precária diante da pandemia.

Aldeia Xavante Marãwatsédé. (Foto: OPAN)

A Fepoimt também promove uma vaquinha online para arrecadar alimentos e produtos de higiene aos povos indígenas. Como está sendo o trabalho?

A ideia de entregar esses alimentos é para que os indígenas não saiam das aldeias. Em breve vamos entregar. Tem um setor da Fepoimt que está contando a quantidade das cestas básicas e dos produtos de higiene arrecadados. Já conseguimos arrecadar muitos alimentos, álcool em gel e máscaras. A campanha começou no dia 17 de abril e continua durante todo o mês de maio. Também estamos fazendo o levantamento das aldeias mais necessitadas, com dificuldades de alimentação, para entregarmos as doações que serão feitas em parceria com os Dseis e a Funai. Os técnicos desses órgãos irão fazer todo os procedimentos de desinfecção para entregar os produtos nas aldeias.

Acesse a campanha aqui.

 

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/599541-coronavirus-nao-queremos-outro-genocidio-indigena-diz-crisanto-rudzoe-tseremey-wa-da-etnia-xavante

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