Diario do Centro do Mundo – 19 de julho de 2021
Publicado originalmente em Escrivaninha:
Por Dayanne Borges e Ricardo Moura
“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos. Missa Paróquia Paz hj. Botamos os comunistas pra correr”. A mensagem de voz que circula no whatsapp dá conta de uma bem-sucedida ação promovida na Igreja Matriz da Paróquia da Paz, nesse último domingo, dia 18, por bolsonaristas. Um militar reformado expõe ao interlocutor suas impressões sobre a presença ostensiva e organizada de opositores na celebração a fim de impedir que pautas que não fossem de interesse do grupo fossem abordadas na missa. O conteúdo do áudio é o que segue:
“Domingo passado não foi a confusão que o MST, os de vermelho, invadiram a igreja e leram o manifesto da Covid, do genocídio no meio da missa? Um padre filha da puta que é um padre comunista safado… Aí o pessoal se revoltou, os militares combinaram tudo de ir pra missa. Estava cheio de general, coronel, foram tudo de verde e amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego, perdão… “Aqui é pra rezar”… Já afastaram o padre lá. Da outra vez estava cheio de militar. Foi uma beleza a missa com a nossa presença lá. Era os militares tudinho, meu irmão. Tinha carro de polícia lá fora, tinha tudo que o Camilo tinha mandado desde o domingo passado para proteger o MST. Não apareceu um. Dizendo que iam pro confronto e tal. Cheio de militar lá tudo de verde e amarelo, Brasil. O padre não falou em Covid, não falou em nada, só fez dizer que era a casa Deus, que perdoasse, que o lugar era de missa. Foi bom, tem que marcar a posição, não pode deixar esses filha da puta ocuparem os espaços nãos. Até dentro de igreja lendo manifesto comunista da CNBB, bando de filha da puta. Foi bom, um abraço”.
A sensação de vitória ocorre após dois domingos de elevada tensão na paróquia. As críticas feitas à atuação do Governo Federal causaram revolta em parte dos fiéis que passaram a hostilizar os sacerdotes tanto nas missas quanto nas redes sociais. O ato do último domingo, dia 18, vinha sendo gestado pelo Whatsapp, como informou o Blog Escrivaninha. Nem o padre Lino Allegri e nem o pároco da Paróquia, padre Oliveira Braga Rodrigues, alvos dos ataques, participaram da celebração dominical. Não há informações sobre quando Allegri retornará à missa da Matriz. Na tarde de ontem, o religioso celebrou na Capela Nossa Senhora das Graças, na comunidade Trilha do Senhor.
As agressões fizeram com que o padre Lino Allegri solicitasse o ingresso no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, conforme revelou, também com exclusividade, o Blog Escrivaninha. A notícia repercutiu local e nacionalmente, ganhando espaço nas páginas do O Globo (embora o sacerdote tenha sido tratado na matéria como pároco, o que não é correto) e do UOL, fazendo com que o governador do Estado tivesse de se pronunciar sobre o caso no domingo à tarde.
Camilo Santana demonstrou solidariedade ao presbítero e classificou como “inaceitável” a “atitude desses que se dizem cristãos ‘invadirem’ uma igreja para insultar e intimidar um líder religioso”. O Governador revelou ter pedido a abertura de um inquérito para investigar os ataques. “Informo que desde a semana passada determinei ao nosso secretário da Segurança para não só enviar policiais para garantir a integridade do Padre Lino como instaurar inquérito para apurar qualquer tipo de ameaça contra ele. Não iremos aceitar que atitudes como essa, de ódio e intolerância, fiquem impunes”, argumenta.
Se o Governo do Estado se manifestou publicamente, o mesmo não se pode dizer sobre o arcebispo de Fortaleza, dom José Aparecido Tosi. Procurado pela reportagem desde a quinta-feira passada, dia 15, o Setor de Comunicação da Arquidiocese não se pronunciou sobre os ataques, muito menos se o padre Lino Allegri voltará a celebrar missas na Igreja Matriz da Paróquia da Paz. O silêncio causou incômodo nas redes sociais.
Missa foi marcada por clima de apreensão
O policiamento esteve mais uma vez presente no entorno da Igreja Matriz. A celebração, dessa vez, ocorreu sem transtornos, embora fosse possível perceber um grande número de pessoas de verde e amarelo. Não houve menções diretas à conjuntura política e sanitária do país como das outras vezes. Os celebrantes da missa foram o padre Francisco Sales de Sousa, vigário da paróquia, e o diácono Aurimar de Moura. Eles foram recebidos com uma salva de palmas enquanto se preparavam para iniciar a missa. Mas antes disso, na entrada, já era possível perceber um apelo à paz por parte dos paroquianos. Fiéis distribuíram adesivos com a frase “somos da paz”. Enquanto muitos aderiram à iniciativa, outros recusaram colocar o acessório.
A segunda Leitura contemplou a Carta de São Paulo aos Efésios, que pregava a unidade em vez da divisão, haja vista que, a partir do judeu e do pagão, Jesus criou um só homem além de destruir a inimizade entre a humanidade. O texto sagrado não deixa de ecoar a divisão interna existente na paróquia, mas dessa vez sem a possibilidade de um Salvador que possa unir os dois lados.
O momento da homilia foi aguardado com tensão, uma vez que as hostilidades se deram a partir do pronunciamento do padre. No entanto, o padre Sales utilizou a oportunidade do discurso para reiterar o que tinha sido lido na liturgia da missa. Abordou o sentimento de exaustão que domina a todos e tentou se mostrar descontraído, mas o clima pesado que imperava sobre os paroquianos não se dissipou. Na hora da prece das intenções, uma delas se deu pela saúde do presidente Jair Bolsonaro. Pouco depois, um homem apanhou o microfone e pediu pelo fim da ditadura em Cuba. Foi aplaudido.
Padre Lino irá solicitar inclusão no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH)
Aos 82 anos de idade e aos 56 anos de vida sacerdotal, o padre italiano Lino Allegri, deverá solicitar o ingresso no Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH). A decisão ocorreu na noite da última quinta-feira, dia 15, durante uma reunião virtual com amigos e membros da Defensoria Pública e do Ministério Público. A escalada de agressões, ataques virtuais e hostilidades ocorridas na Paróquia da Paz contribuiu para que esse fosse o caminho a ser tomado. A medida visa à proteção da integridade pessoal do sacerdote, bem como assegurar a manutenção da atuação dele na defesa dos direitos humanos. A possibilidade de que mais pessoas envolvidas nesse episódio de intolerância possam vir a pedir a inclusão no programa não está descartada.
A reportagem é de Dayanne Borges e Ricardo Moura, publicada por Escrivaninha, 17-07-2021.
Quando chegou em Fortaleza, no início da década de 1990, padre Lino atuou principalmente nos bairros da periferia, onde foi pároco no Genibaú, no Tancredo Neves e na comunidade das Goiabeiras, na Barra do Ceará. O convite para celebrar na Paróquia da Paz foi feito pelo pároco da época, o monsenhor Virgínio Asênsio Serpa. Por causa de sua condição como religioso aposentado, Lino Allegri passou a contribuir pontualmente nas capelas que atendem comunidades como a dos Trilhos e a do Campo do América. O atual pároco, padre Oliveira, pediu para que o sacerdote mantivesse suas atividades paroquiais.
O padre afirma poder contar com uma rede de apoio, reconhecimento e solidariedade em torno da sua atividade pastoral. Embora estejam vivendo um período de provação, os laços que unem os sacerdotes que compõem a paróquia tornaram-se mais fortes. Um exemplo disso é que a celebração dominical do dia 11, que foi interrompida por um coronel do Exército da reserva, foi denominada pela comunidade como missa de desagravo ao padre Lino.
A missão tem lá seus espinhos. Lino Allegri revela ter sentido um certo estranhamento por parte de alguns fiéis desde que chegou à paróquia, haja vista o contraste entre os públicos com os quais trabalhou, que era formado majoritariamente por pessoas pobres, trabalhadoras e vulneráveis.
Ainda assim, o padre ressalta não ter vergonha de assumir que a Teologia da Libertação o ajudou a entender o papel do cristão na sociedade. O sacerdote diz que sua marca é fazer uma ligação entre a palavra de Deus com a vida concreta em sociedade, mesmo que isso possa ser motivo de não aceitação por parte de determinadas pessoas que possuem uma realidade e uma condição social diferentes.
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Os irmãos Ermano e Lino Allegri (Foto: Blog Escrivanhinha | Reprodução)
Igreja em saída
Após décadas de sacerdócio, o padre estabeleceu uma estreita ligação com o movimento Igreja em Saída, formado por sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos e leigas, que busca atender ao apelo do Papa Francisco. “No primeiro ano do pontificado do papa, em um dos seus discursos, ele utilizou a expressão que a igreja deveria ser em saída, isto é, sair dos templos e se deslocar até as periferias geográficas e existenciais. Para não pensar que ser igreja é apenas se reunir no espaço físico e celebrar sacramentos”, comenta.
Padre Lino faz questão de acrescentar que o surgimento desse movimento em Fortaleza não foi promovido pelo alto escalão da Igreja Católica, como os bispos, mas sim por um grupo de leigos em parceria com três sacerdotes, incluindo os irmãos Allegri (Lino e Ermano). A busca por uma organização mais horizontal é uma característica da atuação do religioso, cujo foco está centrado justamente nas populações mais vulneráveis. Um exemplo disso é o trabalho dele na criação e no desenvolvimento da Pastoral do Povo da Rua.
Sobre o PEPDDH
O Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos consiste no conjunto de medidas protetivas e atendimento jurídico e psicossocial a pessoas ou grupos que promovem, protegem e defendem os Direitos Humanos, e que estão em situação de risco ou que sofreram violação de direitos em razão de sua atuação. O programa integra o Sistema Estadual de Proteção a Pessoas.
As formas de proteção do PPDDH são: visitas no local de atuação do defensor, realização de audiências públicas de solução de conflitos e acompanhamento das investigações e denúncias. É preciso a comprovação de que o interessado atue ou tenha como finalidade a defesa dos direitos humanos e seja identificada a causalidade entre a violação ou ameaça e a atividade de defensor.
Entenda o caso
Lino Allegri é um padre missionário italiano com 56 anos de vida presbiteral. No Brasil desde a década de 1970, o religioso possui diversas contribuições para a ação pastoral e eclesial na Igreja. Atuou nas comunidades de base desde o interior da Bahia, esteve presente nas pastorais sociais, na coordenação do Centro de Defesa e Promoção Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza e na Agência de Notícias Esperança (Anote). Atualmente está engajado na Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de Fortaleza.
No último dia 4, Allegri foi hostilizado por um grupo de fiéis minutos após o fim da celebração da missa de domingo. Em sua homilia, o sacerdote criticou o presidente Jair Bolsonaro pela forma como o Governo Federal vem se portando durante a pandemia da Covid-19, em que mais de 530 mil brasileiros foram mortas pela doença. Oito pessoas entraram na sacristia sem autorização e o repreenderam pelos comentários de forma agressiva e em tom de ameaça.
Allegri afirma ter sido vítima também de xenofobia. “Eles entraram na sacristia já bastante alterados, com tom de voz agressivo, me atacando. Disseram que não estavam de acordo com o que eu tinha falado em relação ao presidente da república, que ele é um cristão e um bom presidente, e que eu deveria rezar por ele”, disse o padre em entrevista ao OPOVO.
No último domingo, dia 11, um homem interrompeu a celebração e teve de ser contido e expulso do local por fiéis. A ação ocorreu justamente no momento em que uma carta de apoio e solidariedade ao padre Lino estava sendo lida.
Bastidor
Fizemos o contato pela manhã, mas por causa de um dia cheio de compromissos, o padre Lino, só pode atender o Blog Escrivaninha às 19 horas da última sexta-feira, dia 16. Mesmo atravessando uma semana turbulenta, o sacerdote foi solícito e manteve um diálogo descontraído na medida do possível. A entrevista aconteceu por meio de uma videochamada no Google Meet. O religioso relembrou com bastante eloquência e disponibilidade sua caminhada na vida sacerdotal, embora parecesse receoso de falar sobre os ataques sofridos.
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Políticos cearenses prestam solidariedade a padre Lino após perseguição
O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), determinou a abertura de uma investigação para apurar o caso
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Políticos cearenses das esferas municipal, estadual e federal repercutiram o caso de perseguição e ódio contra o padre Lino Allegri, ocorrido em Fortaleza, neste mês. O prefeito da Capital, José Sarto (PDT), o presidente da Assembleia Legislativa do Ceará, Evandro Leitão (PDT) e deputados federais cearenses prestaram solidariedade ao padre após intimidação de grupos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Sarto considerou como “inaceitável” a hostilização sofrida por Lino e ressaltou o apoio ao governador Camilo Santana (PT), que determinou a abertura de uma investigação para apurar as ameaças. De acordo com Santana, as ações de bolsonaristas integram um inquérito cuja abertura foi solicitada ainda na semana passada.
Os deputados estaduais Evandro Leitão (PDT) e Renato Roseno (Psol) comentaram o caso na manhã desta segunda-feira, 19, em seus perfis no Twitter. “A intolerância em qualquer nível é inaceitável. Dentro de uma casa religiosa, onde se prega o amor e respeito ao próximo, é mais absurdo ainda”, escreveu Leitão. Já Roseno disse que bolsonaristas querem “sequestrar a palavra de Cristo em nome de um projeto de intolerância, autoritarismo e violência”.
Entenda o Caso Padre Lino Allegri
No começo do mês, no dia 4 de julho, o sacerdote foi hostilizado verbalmente por pelo menos oito católicos que invadiram a sacristia. O grupo estava motivado pela revolta contra as críticas feitas por Lino Allegri à política do presidente Jair Bolsonaro, em especial a condução desastrosa diante da pandemia da Covid-19.
Em um sermão matutino, o padre reforçou ainda a lembrança dos mais de 500 mil mortos pela pandemia, destacando que parte de tais mortes poderiam ter sido evitadas com uma condução mais assertiva das politicas de enfrentamento ao novo coronavírus. Diante das falas do padre, alguns fiéis apoiadores de Bolsonaro retornaram após o fim da missa celebrada para rechaçar o sacerdote.
Uma semana após o primeiro ataque, um homem, também apoiador de Jair Bolsonaro, adentrou na Paróquia da Paz gritando ofensas aos padres no domingo, 11 de julho. Na ocasião, um dos sacerdotes que comandava as celebrações era Ermano Allegri, irmão do padre Lino.
Neste caso, os fiéis se uniram em uma espécie de barreira e conseguiram expulsar o homem da igreja, que diante dos defensores dos padres, se retirou do local sob protesto. Todo ocorrido foi filmado e repercutido nas redes sociais entre aqueles que apoiaram o homem e os que criticam os ataques feitos por ele e demais apoiadores de Bolsonaro.
O caso ganhou grande adesão do grupo de bolsonaristas residente em Fortaleza, que passou a frequentar a Paróquia da Paz, no bairro Aldeota, onde o padre atua, como forma de fiscalizar a atuação de Lino. O grupo seguiu ainda com xingamentos, produzindo inclusive ameaças de agressão ao padre devido às criticas feitas ao presidente.
Diante do ocorrido, a paróquia, em reunião com Lino, optou por afastar o padre da realização das missas, como forma de assegurar sua integridade física, mental, além de tentar evitar possíveis tumultos exacerbados pelo grupo bolsonarista dentro da igreja.
Na manhã deste domingo, 18, um grupo de apoiadores de Jair Bolsonaro, vestidos em sua maioria com roupas da bandeira do Brasil e blusas estampadas com frases de apoio ao presidente, ocuparam a igreja como forma de protestar contra as atitudes do padre e o obrigar a deixar de lado às criticas a Bolsonaro.
Em resposta à ocupação da igreja por bolsonaristas que se opõem ao padre Lino, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), revelou, por meio das redes sociais, que todas as ameaças feitas ao sacerdote estão sendo documentadas e integram um inquérito de investigação sob tutela da SSPDS.
Padre Lino Allegri aguarda ingresso no Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH) e segue sem data determinada para seu retorno às atividades paroquiais abertas ao público.
Lino é defensor da Teologia da Libertação, movimento considerado apartidário que engloba várias correntes de pensamento interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais, políticas e econômicas.
Entrevista: ódio e risco à integridade física afastam padre Lino de igreja
O intolerante não quer dialogar. A afirmação é do padre Lino Allegri, 82 anos, pivô de uma reação de ódio e intolerância por parte de um grupo de católicos que frequentam a igreja da Paz, em Fortaleza, e são fiéis a Jair Bolsonaro
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As ameaças de mais patrulha aos sermões do padre Lino Allegri, e até risco à integridade física do sacerdote na igreja da Paz, no bairro Aldeota, em Fortaleza, afastaram por enquanto o religioso das missas no templo católico. Não é uma decisão oficial da Arquidiocese de Fortaleza, apenas precaução da paróquia. O POVO teve acesso a mensagem de WhatsApp onde um homem promete monitorar e reagir à homilia de Lino Allegri.
No começo do mês, no dia 4/7, o sacerdote foi hostilizado verbalmente por pelo menos oito católicos que invadiram a sacristia. Revoltados com críticas feitas por Lino Allegri à política do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e a condução desastrosa diante da pandemia da Covid-19, fiéis apoiadores do capitão reformado pelo Exército constrangeram o padre.
O POVO – O que o senhor diria para os paroquianos que afirmam que seu sermão não foi conveniente na paróquia da Paz?
Padre Lino – Sinceramente, não saberia o que dizer. Porque, quando faço um sermão, em primeiro lugar me preparo anteriormente. Não é uma improvisação. O que tento fazer é sempre colocar a palavra de Deus dentro da realidade, do cotidiano em que o povo vive. É uma tentativa de fazer com que o Evangelho, escrito há muito tempo, possa ser uma força, uma luz para os dias de hoje. Um Evangelho se encarnando na vida do povo de hoje. Eu diria que essas pessoas têm todo o direito de discordar daquilo que eu digo, mas reivindico a liberdade de poder dizer aquilo que acho conveniente para o bem da comunidade.
O POVO – O Evangelho é também uma manifestação política?
Padre Lino – Primeiro, deveríamos entender o que significa a palavra política. Porque política significa tudo aquilo que se refere a vida humana. Todas as atitudes que nós tomamos são políticas, a gente querendo ou não. O Evangelho tem sim uma dinâmica que procura entrar na vida das pessoas para modificar à vida. Para que a vida da sociedade se torne cada vez mais humana. O Reino de Deus significa fazer com que a humanidade se torne mais humana. O Reino de Deus não é uma concepção abstrata, é real. É nessa realidade humana que Deus quer reinar. Ele reina quando as pessoas são humanas.
Domingo, dia 4 de julho, não houve conversa. As pessoas que vieram à sacristia vieram um pouco exaltadas. Foram gritos, a meu ver não para conversar que estavam ali
O POVO – O sacerdote ou o pastor que se cala diante do momento político no Brasil peca por omissão?
Padre Lino – Penso que sim. O sacerdote e o pastor não podem se calar diante da vida que as pessoas levam quando essa vida está sendo desrespeitada, machucada e violentada. A pessoa do sacerdote, no meu modo de ver, deve sim colocar o momento concreto, então político, e aqui não entendo de partidário, falo de político como ação humana que é política. O Evangelho, nós dizemos, é luz para iluminar situações concretas de desumanidade, de injustiça, de violência. O Evangelho deve dizer uma palavra que norteará a ação dos cristãos que querem ser seguidores de Jesus Cristo.
O POVO – Jesus Cristo é um personagem político?
Padre Lino – No sentido que entendo a palavra político, com certeza, Jesus era uma pessoa política como toda pessoa humana. Político quer dizer que diante de uma realidade, tenho de tomar uma decisão. Ser a favor, ser contra. Propor mudança ou propor a continuidade. Cada escolha que nós fazemos é uma ação política. E Jesus que viveu no seu tempo e viveu a realidade de seu povo, porque ele andava de povoado em povoado, era um leigo que vivia a vida do leigo do trabalhador. Em certo ponto, ele se apresentou como o enviado de Deus para mostrar o caminho que conduz a humanidade a ser humana, a ser o Reino de Deus. As decisões dele eram políticas. Repito, não partidárias. Quem o matou, além do templo dos sacerdotes, foi também o poder político romano que via na atitude dele um perigo contra quem oprimia o povo.
O POVO – O senhor já esperava a reação na paróquia da Paz, área de católicos conservadores?
Padre Lino – Eu não esperava, mas não me admirei quando ocorreu. Na verdade, não é a primeira vez que isso acontece comigo nessa igreja. De dois anos para cá, praticamente ocorreram umas quatro vezes. Houve, depois da missa, pessoas que vieram conversar comigo dizendo que não estava de acordo com o que eu tinha dito. A diferença foi que a gente conversou. Domingo, dia 4 de julho, não houve conversa. As pessoas que vieram à sacristia vieram um pouco exaltadas. Foram gritos, a meu ver não para conversar que estavam ali. Eu estava disposto a falar. Os ministros da eucaristia que estavam comigo pediram que eles saíssem, mas eu disse que deixasse que eu iria conversar. Eles vieram aos gritos dizendo que o “presidente era um bom cristão e que era bom que eu voltasse para a Itália. Aqui não precisamos do senhor”. Tudo de maneira alterada sem querer dialogar. Nas minhas pregações há gente que não concorda, isso é normal. É um direito discordar, o padre não tem a palavra absoluta. O que aconteceu no domingo não foi uma tentativa de conversa, foi uma intimidação. Houve uma violência verbal, não houve violência física. Eram gritos e não palavras de uma conversa.
Eu sei que está mais difícil hoje do que no passado aceitar aquele que age e pensa de maneira diferente, mas essa intolerância nós temos que saber superar
O POVO – Em outras igrejas o senhor faz homilias que abordam cotidianos políticos?
Padre Lino – Sim. Aquilo que eu prego na igreja da Paz, quando celebro em outras paróquias e capelas na periferia, eu sempre faço a tentativa de ligar a fé com a vida. O evangelho com a vida. Aquilo que Jesus fala confrontando com uma prática nossa. E, também, denunciando se determinadas situações são contrárias ao Evangelho. Por exemplo, diante da morte de mais de meio milhão de pessoas (por Covid-19 no Brasil), é difícil ficar calado e não dizer nada. Não vou dizer que em todas as missas há de falar disso, mas não é concebível que a igreja não diga nada como se isso fosse natural. Naturalizar a injustiça, naturalizar a violência, os roubos que fazem à custa do povo, não podemos. Quando nós naturalizamos, estamos contra o Evangelho. As minhas pregações não mudam porque estou no Centro e, depois, na periferia. Se falo aos pobres, falo de um jeito? Escondo ou friso certas coisas ou mudo se a assembleia é de classe média e alta? Não, não mudo. Aquilo que falo na igreja da Paz, falo também na periferia onde celebro.
O POVO – Como o senhor observa a transformação do espaço da igreja em embate político?
Padre Lino – Se for um embate partidário não é o lugar. A igreja não é o espaço para isso. Se for política no sentido que já falei aqui, acho que é normal. A igreja é o espaço onde se anuncia a palavra de Deus. Agora, uma palavra de Deus que não é para extraterrestres. A palavra de Deus é para nós humanos, para melhorar a nossa vida humana. Diante da violência e da morte de pessoas, por exemplo, que são gays, negros ou porque são de favelas. A igreja não pode ficar calada e tem todo o direito de denunciar. Isso é fazer política, mas não partidária. É política no sentido mais bonito da palavra.
O POVO – O que fazer para transformar a intolerância em acolhimento?
Padre Lino – O tempo que estamos vivendo é difícil acolher o diferente, quem pensa e age diferente. É difícil aceitar uma pessoa que tenha uma escolha política partidária “x” por outro que tem uma escolha partidária “y”. É difícil acolher uma pessoa homossexual porque me considero heterossexual. É difícil defender a mulher que é violentada diante daqueles que acham normal. A intolerância é difícil de ser acolhida. Eu li uma frase, não sei onde, que perguntava “como tolerar o intolerante?”. O intolerante não quer dialogar. O acolhedor é aquele que quer dialogar mesmo na diferença, mesmo nas visões diferentes de mundo, de igreja, de sociedade, de ideologia. Para que não haja intolerância é necessário que haja vontade de diálogo. O diálogo não significa que, depois, eu vou pensar como o outro. Pode até continuar com as diferentes visões, mas no diálogo se respeita o outro. Acolhe-se o outro mesmo na diferença. O outro não deve se tornar um inimigo porque tem uma preferência diferente da minha. Eu posso conviver com o diferente, o diferente não pode ser tratado como meu inimigo e como inimigo de Deus.
O POVO – Qual o papel das religiões no combate à intolerância?
Padre Lino – As religiões deveriam ter o mesmo objetivo comum que é ajudar a gente a se relacionar com Deus. Agora, a gente se relaciona com Deus na medida em que nos relacionamos com as pessoas. Não existe uma maneira diferente de se relacionar com Deus e outra com as pessoas. Tanto é verdade que o mandamento maior é amar a Deus e amar ao próximo. O amor a Deus e o amor ao próximo não são diferentes, um é o espelho do outro. Eu sei que está mais difícil hoje do que no passado aceitar aquele que age e pensa de maneira diferente, mas essa intolerância nós temos que saber superar. As religiões têm de ajudar nisso e não aprofundar a intolerância e as divisões.
PERFIL DO PADRE LINO ALLEGRI
Lino Allegri nasceu em 21 de dezembro de 1938, na Itália. Começou a vida religiosa ainda na infância e frequentou seminários católicos até a adolescência. Estudou Teologia e foi ordenado padre em 1965. Chegou a ser vigário em paróquias italianas, onde quis ser um padre-operário. Não conseguiu e por ordens superiores, em 1970, veio para o Brasil.
No Brasil, em meio à ditadura militar (1964-1985), Lino atuou em cidades interioranas da Paraíba, Bahia e Goiás. Sempre em comunidades muito pobres e, a partir da Bahia, tendo o irmão Ermano Allegri, também padre, ao lado. Missão que o trouxe a Fortaleza em 1991.
Na capital cearense foi pároco nos bairros Genibaú e Tancredo Neves, e na comunidade das Goiabeiras, na Barra do Ceará. Coordenou as pastorais sociais da Arquidiocese no Estado e o Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. Padre Lino foi diretor da Agência Anote.
Além da paróquia da Paz, padre Lino já celebrou missas na capela de São Roque, no bairro Sabiaguaba, na capela de Santa Terezinha, no Monte Castelo, na Comunidade do Trilho e na paróquia da Lagoa Redonda. É membro da coordenação da Pastoral do Povo de Rua.
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