No estado gaúcho, só no mês de abril, houve um aumento de 55,6% em feminicídios em comparação com o ano passado

“A violência contra as mulheres tem raiz numa cultura patriarcal, machista, que trata as mulheres com inferioridade, que delega aos homens o poder sobre suas vidas, seus corpos, suas ideias. É uma cultura que dá alta legitimidade aos homens para domesticar as mulheres e moldá-las de acordo com seus padrões e referências, e se necessário, matá-las”, afirma a jornalista, mestre em Ciência Política, integrante da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe/RSMLAC, Télia Negrão.
Segundo ela, pela metodologia simples que está trabalhando, o ano de 2021, a seguir a tendência atual, será um período extremamente perigoso para as mulheres do Rio Grande do Sul, pois a média mensal de feminicídios tem sido de 8,5 mortes de mulheres contra 6,5 ao mês em 2020.
Coordenadora da Campanha Ponto Final na Violência Contra Mulheres e Meninas no âmbito do Brasil e AL e Caribe (RSMLAC), Rede Feminista de Saúde e Oxfam, entre os anos de 2009 a 2011, Télia fez recentemente um levantamento sobre os principais crimes contra as mulheres no estado.
“A situação vivida no RS reflete o descenso nas políticas para as mulheres como um todo, pois elas são destinadas ao fortalecimento das mulheres na sua autonomia pessoal, econômica, cultural em termos de comportamento. Os cortes de recursos federais destinados a estas políticas expressam-se no estado, onde foi desmontado o arcabouço político-institucional, o orçamento para sua implementação bem como das políticas e serviços, assim como dos processos participativos e de controle social”, alerta.
::Força-tarefa de combate a feminicídios organiza ações no Rio Grande do Sul::
O Brasil de Fato RS conversou com a jornalista sobre a violência contra as mulheres, as políticas e o impacto que ela causa na sociedade e também sobre o Levante Feminista contra o Feminicídio lançado recentemente.
Ela também questiona o papel da mídia como um todo. “Por que os jornais da mídia conservadora continuam reproduzindo informações sem pensar nas vítimas? Acho que este mesmo papel pode ser jogado pelo audiovisual, já há uma produção importante, diretoras mulheres, algumas negras, jovens, lésbicas, bem atuantes, mas precisamos fugir de estereótipos e do vitimismo, não importam quais sejam. Importante olhar as mulheres a partir do seu empoderamento político, de gênero, reverter este quadro de tanta desigualdade que existe no Brasil.”
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS – Segundo dados recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que traz um recorte desse período da pandemia, uma mulher é agredida fisicamente a cada dois minutos, e a cada oito minutos uma pessoa do sexo feminino é vítima de estupro. Em outro levantamento, divulgado pela imprensa, no RS, só no mês de abril, houve um aumento de 55% em feminicídios em comparação ao mesmo período do ano passado. Tu apontas que a violência contra as mulheres no RS segue um continum histórico desde 2012. E fez uma projeção que os feminicídios bateriam novo recorde em 2021. Nos fala mais sobre a tua pesquisa.
Télia Negrão – Desde o ano 2000 eu acompanho os dados de violência no Rio Grande do Sul. Primeiro foi através de coleta direta de dados em toda a rede de atendimento por um projeto do Comdim de Porto Alegre, denominado Daniella Peres, que na época foi a primeira observação quantitativa deste problema.
Este estudo foi renovado em 2010, a pedido da prefeitura, e em 2013 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do RS. Isso nos permitiu construir um entendimento e um olhar para números, que valem menos pelo que mostram do que pelo que não mostram e precisam ser então interpretados.
Neste ano, frente às denúncias do aumento dos feminicídios em janeiro, voltei aos dados, tendo como fonte os números do Observatório da Mulher da Secretaria de Segurança do RS e matérias de imprensa. E foi assustador, pelos números e pelas interpretações das próprias autoridades de Segurança Pública.
Os dados oficiais do RS são representados apenas em planilhas simples, não há percentuais nem curvas por tendências. Então o que se tem é a frieza dos números a nos dizer que subiu ou desceu, o que é ilusório, pois na verdade eles se mantêm, a cena não se alterou.
Quando a justiça não se faz, perde-se o crédito nela, banaliza-se a violência, banaliza-se a justiça. A relação entre os números de violência e responsabilização dos agressores e estupradores dá uma medida nessa banalização
Mas qual a relação entre eles?
Esta foi minha motivação. Tive que construir uma metodologia simples, comparando principalmente dois indicadores, de feminicídio consumado e feminicídio tentado, somando os casos notificados mês a mês e transformando-os num indicador a ser replicado por 12 meses.
O ideal seria termos curvas anuais para verificar se existe uma homogeneidade nas tendências dos números mês a mês, dar um valor a cada mês e então fazer uma projeção e significado percentual de cada mês e obter um número fiel. Por exemplo, se o mês de janeiro hipoteticamente corresponde, num estudo longitudinal, a 3 doze avos e não a 1 doze avos. Isso não foi possível fazer.
Qual foi a alternativa de análise?
Pela metodologia simples, concluímos que o ano de 2021, a seguir a tendência, será um período extremamente perigoso para as mulheres do Rio Grande do Sul, pois a média mensal tem sido de 8,5 mortes de mulheres contra 6,5 ao mês em 2020, e tem havido uma queda no número de feminicídios tentados. Pode significar que mais mulheres estão morrendo sem conseguir sequer se defender, sair correndo, gritar, pedir ajuda aos vizinhos.
Pode ser que essas mulheres não tenham conseguido registrar as ameaças de violência que vinham sofrendo, daí porque há uma redução no número de ameaças e lesões corporais. Isso demonstra um quadro de elevadíssimo risco para as mulheres.
Enquanto os feminicídios continuarem elevados todos os outros dados têm que ser relativizados, pois são os indicadores “invertidos”, ou seja, quanto menos eles aparecem, e quanto mais temos feminicídios, significam que as mulheres não estão conseguindo ser atingidas nem por campanhas de prevenção, nem por medidas concretas, nem pela rede de atendimento.
“Quando a justiça não se faz, perde-se o crédito nela, banaliza-se a violência, banaliza-se a justiça” / Arquivo Pessoal
Onde nasce essa violência? Que fatores explicam esse aumento da violência?
A violência contra as mulheres tem raiz numa cultura patriarcal, machista, que trata as mulheres com inferioridade, que delega aos homens o poder sobre suas vidas, seus corpos, suas ideias. É uma cultura que dá alta legitimidade aos homens para domesticar as mulheres e moldá-las de acordo com seus padrões e referências, e se necessário, matá-las.
A América Latina e o Caribe são os lugares do mundo mais perigosos para a população feminina, segundo muitos estudos, e o Brasil se transformou no quinto em que mais se matam mulheres.
São países de tradição colonial, cultura escravista e discriminatória às mulheres e tudo que se associa ao feminino. Daí porque mulheres trans são atacadas e mortas e o estupro corretivo tornou-se um dos crimes mais graves no Brasil.
Há, hoje, de um lado o abandono das políticas públicas pelo governo federal, que retirou os recursos orçamentários e deixou de repassá-los aos estados e municípios e ao mesmo tempo o crescimento das manifestações de caráter misógino e o fomento do uso da força e das armas na solução de conflitos. O resultado é mais feminicídio.
Durante a pandemia os fatores que potencializam a violência doméstica, como a intolerância dos homens dentro de casa, a exigência de papéis estereotipados de gênero como a de dona de casa exemplar, em condições de moradia deficitárias, atuaram para a ocorrência de mais violência. Essa hoje é subnotificada.
Não dar os meios é relegar ao silêncio. E o silêncio pode ser a morte, até mesmo a morte em vida, simbólica.
No seu estudo, também apontas que ainda não é possível afirmar o quanto a pandemia produziu de sofrimento às mulheres porque pode ter havido uma enorme subnotificação, embora no cotidiano se tenha verificado o aumento das tensões nas relações pessoais e familiares, seguindo uma tendência mundial apontada pela ONU Mulheres e movimentos em todo o planeta. Como as subnotificações interferem numa leitura real quando falamos na violência contra as mulheres?
A subnotificação é o indicador do que não se vê. Esse foi um fenômeno mundial nesta pandemia, e o mais interessante foi a omissão dos estados e municípios quanto à implementação de uma lei, a 14.022, da deputada Maria do Rosário, aprovada por unanimidade, que determina medidas para suprir a impossibilidade de a mulher deslocar-se para registrar ocorrências.
No entanto os registros on-line criados são muito complexos para as mulheres, impossível registrar uma ocorrência pelo celular. Eu peguei o manual do Rio Grande do Sul e tentei usá-lo como teste para monitoramento, e não consegui, enviei às amigas, que também não conseguiram, imagine uma mulher que não tem um bom celular, um pacote de dados, não domina a tecnologia…
O que foi feito dos recursos on-line já criados aqui? Por que as políticas são abandonadas? Por que foram esvaziadas justamente na pandemia?
“O atual governo vem trabalhando para desmontar até mesmo o que já existia, como as políticas de atendimento à violência sexual” / Arquivo Pessoal
Há um trecho do poema Ladainha pela Sobrevivência, da escritora americana Audre Lorde que diz “E quando falamos nós temos medo que nossas palavras não serão ouvidas nem bem-vindas, mas quando estamos em silêncio nós ainda temos medo. Então é melhor falar”. Como o silêncio ajuda a perpetuar essa cultura da violência?
O feminismo tem feito o trabalho de denunciar a violência como fenômeno social e cultural que devasta a vida das mulheres desde a década de 1970. O caso de Ângela Diniz, que deu origem à campanha “Quem ama não mata” e questionou a tese da defesa da honra, nos mostrou o quanto era importante a quebra do silêncio nesta perspectiva de um coletivo que representa a metade da humanidade.
Mas a ruptura do silêncio pelas mulheres que estão vivendo a violência não pode ser apenas “incentivada”, ela tem que ser apoiada por meios de acolhimento.
Daí o papel das políticas públicas, pois o momento mais perigoso para a mulher é quando ela denuncia a violência, significa a confrontação com o agressor. Isso deve ser feito com a ajuda de pessoas amigas, familiares, políticas públicas de serviços especializados.
Este alerta já consta num manual das Nações Unidas da década de 1990, não se pode colocar as mulheres em maior risco. Por outro lado, sabemos que se não quebrarmos este silêncio, mostrando inclusive que esta violência recai desigualmente sobre nós, estaremos perpetuando o sofrimento e os assassinatos. Não dar os meios é relegar ao silêncio. E o silêncio pode ser a morte, até mesmo a morte em vida, simbólica.
Há uma banalização da violência contra às mulheres?
Acredito que há menos conformismo, uma grande banalização e uma enorme perversidade. Se lermos os comentários nas redes sociais sobre as denúncias de violência sexual, por exemplo, veremos que há uma parcela da sociedade, composta por homens e mulheres, que conferem legitimidade para estuprar, bater e matar.
Esta é uma construção de gênero alimentada pela omissão do Estado na sua proteção aos direitos humanos das mulheres. Quando a justiça não se faz, perde-se o crédito nela, banaliza-se a violência, banaliza-se a justiça.
A relação entre os números de violência e responsabilização dos agressores e estupradores dá uma medida nessa banalização.
Durante a pandemia os fatores que potencializam a violência doméstica, como a intolerância dos homens dentro de casa, atuaram para a ocorrência de mais violência. Essa hoje é subnotificada.
Por que mesmo com a lei do feminicídio, a lei Maria da Penha, os números são sempre alarmantes?
O Brasil só teve uma lei de violência após ser condenado pela OEA a tê-la, e porque um governo democrático assumiu essa demanda social. E a lei do feminicídio foi uma decorrência dessas lutas, das quais participei ativamente, sabendo que, como parte da nossa cultura, isso seria trabalho de mais de uma geração. É o que estamos vendo.
As leis existem para serem implementadas, o que infelizmente mudou após um período em que o enfrentamento à violência de gênero ganhou prioridade.
Desde o golpe de 2016 passamos a uma fase de abandono das políticas fruto de uma visão ultraconservadora que se instalou no país. A retirada dos recursos e o desmonte das redes em todos os níveis, a pregação em torno da chamada ideologia de gênero, a defesa de um modelo de família com papéis pré-definidos, o posicionamento do Brasil no âmbito internacional contra todo o arcabouço teórico construído por décadas, tudo isso reforça um dos elementos estruturantes da nossa sociedade, que é o machismo.
Não podemos mais trabalhar a partir das mortes de mulheres, é preciso que não se as mate, pois o assassinato de uma mulher, frente aos filhos, numa comunidade, produz novas gerações de pessoas com medo, marcadas pela tragédia e pelo abandono.
Embora o machismo talvez não seja maior hoje do que em outros tempos, é um comportamento que se propaga de forma vertiginosa pelas redes sociais em forma de uma misoginia, um ódio das mulheres, do feminismo que cresceu enquanto expressão política e social.
Há, por outro lado, um enfraquecimento de mecanismos, pois o atual governo vem trabalhando para desmontar até mesmo o que já existia, como as políticas de atendimento à violência sexual, questionando e atuando contra o direito ao aborto nos casos previstos em lei, na tentativa de anular os avanços.
Quais são os principais desafios na prevenção à violência de gênero e o que precisaria ser feito para haver uma mudança desse quadro?
É preciso redemocratizar a sociedade, pois não há como fazer a prevenção da violência de gênero sem que a sociedade possa atuar de forma livre, sem que tenhamos medo de publicar um post nas nossas redes.
Eu me vi esta semana em dúvida sobre um texto que ia postar em defesa de Mariana Ferrer, pois a Secretaria da Mulher da Câmara Federal, um órgão institucional, tinha sido alvo de um ataque violentíssimo pela internet por ter publicado uma nota sobre o caso da jovem.
O objetivo dessa verdadeira afronta foi promover o medo com base no ódio, na desqualificação da vítima e de todas as pessoas que a defendiam. Isso precisa ser enfrentado, não podemos continuar a viver num país em que o fascismo atua dessa maneira.
O fascismo é misógino, é machista, é violento, é ameaçador. Por isso há um desafio democrático forte, civilizatório no Brasil, em que o STF por exemplo tem dado uma contribuição.
A violência de gênero precisa ser tratada em toda a sua dimensionalidade pela escola, encorajando relações baseadas na igualdade e no respeito de gênero, raça, diversidade sexual e contra o capacitismo. Pelas políticas culturais no nosso cotidiano, e obviamente pela implementação das leis.
Precisamos de redes de atendimento que de fato acolham as mulheres e as coloquem frente à justiça. Não podemos mais trabalhar a partir das mortes de mulheres, é preciso que não se as mate, pois o assassinato de uma mulher, frente aos filhos, numa comunidade, produz novas gerações de pessoas com medo, marcadas pela tragédia e pelo abandono.
Como a imprensa e o audiovisual podem contribuir na discussão desse tema?
Houve uma mudança importante ao longo das décadas no tratamento do tema das relações de gênero e violência pela imprensa, acredito que muito porque as jornalistas têm numericamente uma presença expressiva nesta categoria.
Mas não basta noticiar os feminicídios, por exemplo, é preciso nomeá-los de forma correta, não podemos reproduzir teses como da legítima defesa da honra, do uso de expressão como “crime passional”, de tentar explicar a causa do crime como se fosse possível justificar um crime, temos que atuar de forma a permitir uma reflexão pelas leitoras e leitores.
E não aceitar explicações oficiais sem um mínimo de questionamento. Por que os jornais da mídia conservadora continuam reproduzindo informações sem pensar nas vítimas? Acho que este mesmo papel pode ser jogado pelo audiovisual, já há uma produção importante, diretoras mulheres, algumas negras, jovens, lésbicas, bem atuantes, mas precisamos fugir de estereótipos e do vitimismo, não importam quais sejam.
Importante olhar as mulheres a partir do seu empoderamento político, de gênero, reverter este quadro de tanta desigualdade que existe no Brasil.
Recentemente foi lançado o Levante Feminista contra o Feminicídio. Como esse movimento pretende atuar?
Algumas mulheres como Vilma Reis, Marcia Tiburi, que tiveram a ideia, e muitas outras que nos somamos, achamos que não era possível continuar a matança de mulheres no Brasil, que seria necessária uma grande denúncia e tomada de posição da sociedade e do Estado. Este é o objetivo do Levante Feminista, construir uma revolta no Brasil, um país que está colocado como o quarto ou quinto em que mais assassina mulheres.
Em cinco meses já temos o movimento presente em quase todos os estados, em todas as regiões, iniciando estudos sobre a realidade, questionando as políticas públicas e em breve estaremos interpelando as estruturas institucionais sobre o cumprimento de seu papel.
Sabemos que é um enorme desafio num país que vive sob uma pandemia, com um governo ultraconservador e violento com as mulheres, com uma crise econômica e social que exclui milhões de pessoas do trabalho, em especial as mulheres, mas o feminicídio está à nossa frente, como um outdoor que nos mostra o sangue escorrido de até quatro mulheres por dia.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko
SAIBA MAIS EM https://www.facebook.com/LevanteFeminista2021

ASSINE O ABAIXO-ASSINADO >>> NEM PENSE EM ME MATAR
Quem Mata Uma Mulher Mata a Humanidade
Nós, mulheres feministas brasileiras, negras, indígenas, pardas, brancas, quilombolas, periféricas, convivendo com deficiências, lésbicas, bissexuais, cis e trans, das cidades, do campo, das águas e das florestas, nós, mulheres mães, parteiras tradicionais, trabalhadoras precarizadas, hiperexploradas e desempregadas, nos levantamos, em um ato de revolta, contra o feminicídio no Brasil e exigimos seu fim.
Estamos em luta contra o assassinato de mulheres que aumenta desde o golpe de 2016. A cultura do ódio às mulheres, a prática do feminicídio criada pelo patriarcado nunca esteve tão ostensiva e extremista.
A matança de mulheres é um verdadeiro genocídio que se soma ao genocídio negro e indígena, e ao genocídio sanitário no contexto da pandemia que ceifa milhares de vidas sob o descaso do desgoverno.
No primeiro semestre de 2020 foram mortas 648 mulheres brasileiras, a maioria negras e vivendo em duríssima desigualdade social. Os matadores são homens que não admitem a autonomia, a igualdade e a liberdade das mulheres. São machistas, homens violentos que querem a redomesticação e o afastamento das mulheres da vida pública. São machistas que usam a violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial contra mulheres e seus filhos até o extremo, que é o ato do feminicídio.
A escalada de ameaças, humilhações e ataques que culminam no feminicídio íntimo, aquele que acontece dentro de casa, se repete no feminicídio político, que aniquila as mulheres, líderes de esquerda e defensoras de direitos humanos, bem como mulheres indígenas, negras e trans que são alvo preferencial da atual necropolítica de aniquilação.
A violência contra as mulheres é um problema estrutural da cultura machista, racista e homo-lesbo-transfóbica, que nega às mulheres o direito a uma vida livre e plena.
Ideias e atitudes misóginas transformaram-se em comportamento aceito e legitimado pela sociedade, contaminando o Executivo, o Legislativo e o Judiciário capaz de sentenças sexistas e de ressuscitar arcaicos argumentos da “legítima defesa da honra” e da “passionalidade” como uma espécie de “mérito” para absolver criminosos.
Isso confirma a negligência e inoperância do Estado Brasileiro no enfrentamento à violência contra as mulheres.
O clima favorável ao extermínio, que dá aos homens licença para matar, é efeito desse Estado que, em conluio com forças religiosas ultrarreacionárias, vem destruindo direitos duramente conquistados pelas mulheres.
O Estado feminicida vem impedindo a prevenção à violência contra mulheres e meninas, deixando-as abandonadas à própria sorte, entregues a abusadores e violentadores que acabam por se converter em seus assassinos.
Medo de punição e de morte, alimentados no contexto da cultura do estupro e do assédio, impedem mulheres de relatar agressões praticadas por atuais e ex-maridos, namorados e parentes.
Com a má intenção de armar milicianos e apoiadores, o governo fascista e machista tem facilitado a compra e o porte de armas de fogo e munições em apoio à indústria neoliberal de armas. Dentro das casas, sob o signo da violência patriarcal, as mulheres correm o risco de um banho de sangue ainda maior.
Em atos de destruição das políticas para as mulheres, o governo reduziu o orçamento para o desenvolvimento de ações de igualdade de gênero – executando menos de 50% do previsto para 2020.
O empobrecimento e a vulnerabilização das mulheres as expõe ainda mais à política machista da morte.
As que se insurgem permanecendo na resistência ao machismo e ao racismo, como Marielle Franco, estão na linha de tiro de assassinos impunes.
A ascensão de grupos neofascistas, de fundamentalistas religiosos, de latifundiários e extrativistas que propagam ideias e atitudes machistas e racistas, coloniais e de subordinação e dominação das mulheres, precisa parar por aqui.
Aos setores democráticos da sociedade, que se unem contra o fascismo, um alerta: é imprescindível que reconheçam que as violências contra as mulheres são uma desafiadora questão a enfrentar.
O que precisamos nesse momento é de programas consistentes de enfrentamento à cultura patriarcal e racista que leva ao feminicídio. Do contrário, não haverá paz no Brasil. É evidente que o machismo, os ataques brutais e a matança de brasileiras arruínam a democracia.
O Brasil que nós mulheres projetamos em nossa utopia social tem a esperança feminista, fruto da ético-política feminista que defende o direito à vida. As vitórias e conquistas de nossas vizinhas latino-americanas nos inspiram. O direito ao aborto e outras políticas de autonomia na Argentina e no Uruguai nos dão força para seguirmos organizando as lutas urbanas e campesinas, nas bordas dos rios, em cada feira, em cada rua, beco, em cada fábrica, em cada escola, nos caminhos onde nos levantamos por vida e liberdade.
É imprescindível a união coletiva para lutar por uma verdadeira reforma no Sistema Judiciário e nos órgãos de segurança pública, pela inclusão no âmbito escolar da temática dos direitos humanos, gênero e raça na expectativa de desconstruir de vez as ideologias patriarcais capitalistas e racistas que sustentam a violência contra nós, mulheres, em nome de uma noção arcaica de família.
Aqui, em Manifesto, defendemos a democracia popular, onde o Parlamento, o Sistema de Justiça e o Executivo, assim como outras instâncias de poder e decisão, possam ser mobilizadas e atravessadas pelo legado feminista, para conter o assassinato de mulheres.
Por esta razão é que, em público, em nosso nome e em nome daquelas que não estão mais entre nós para gritar, pois foram assassinadas, nós dizemos CHEGA DE FEMINICÍDIO!
Nossa luta tem como objetivo o fim da violência promovida pela cultura feminicida patriarcal, racista e capacitista.
Em memória de Marielles, Elisas, Elianes, Ângelas, Margaridas, Socorros, Marias e centenas de milhares de mulheres que tombaram sob a sanha assassina do patriarcado, firmes na resistência, acolhendo todas as pessoas indignadas com a tragédia da violência contra mulheres como nós, nos juntamos para dizer aos homens embrutecidos e truculentos, para dizer aos assassinos impunes:
#NemPenseEmMeMatar
#NemPenseEmNosMatar
#QuemMataUmaMulherMataaHumanidade
LEVANTE FEMINISTA CONTRA O FEMINICÍDIO
ASSINE AQUI O ABAIXO-ASSINADO >>> NEM PENSE EM ME MATAR
fonte:https://soscorpo.org/?p=13766
“Houve um dia, que eu até sentia medo / Que você chegasse cedo / Pro meu corpo machucar / Mas eu virei o tabuleiro / Este jogo, companheiro /Eu não vou mais aceitar /Nem Pense Em Me Matar”!
O trecho da música acima é uma forte mensagem de basta! Mulheres de todo o Brasil, organizadas e articuladas em mais de 360 coletivos, movimentos e organizações feministas lançaram a Campanha #NemPenseEmMeMatar, na manhã da última quinta-feira, dia 25 de março, dia que entra para a história do país e dos movimentos sociais como o início do Levante Feminista Contra o Feminicídio, criado para enfrentar o cenário de agravamento dos casos de assassinatos de mulheres brasileiras. A canção, “O Corpo é Meu”, composta por Cris Pereira e interpretada pela artista Fabiana Cozza, é o hino que fortalece a Campanha: “Essa força que eu trago / quem me deu / foram outras mulheres nessa estrada”.
Assista abaixo o clipe:
Presente em mais de 20 estados do país, o Levante se ergue para enraizar no país inteiro, das capitais aos mais interioranos territórios, chegando nos quilombos, territórios indígenas, periferias, dos grandes centros, do campo, florestas e das águas. O objetivo da Campanha é ampliar o enfrentamento à violência contra as mulheres, em suas diferentes dimensões, mas sobretudo, para estancar o sangue que está sendo derramado todos os dias com o feminicídio de milhares de mulheres. Este grave problema social é uma das expressões da força do patriarcado como um sistema que estrutura as desigualdades entre mulheres e homens. O poder da violência contra as mulheres tem o seu ápice com o feminicídio, o assassinato de mulheres cisgêneras, transgêneras e lésbicas, como traço do ódio patriarcal contra o feminino.
De acordo com dados publicados no Manifesto da Campanha Nacional Contra os Feminicídios no Brasil, no primeiro semestre de 2020, 648 mulheres foram vítimas de feminicídio, sendo que mais da metade dos casos foram contra mulheres negras e periféricas vivendo em situações de extrema desigualdade social, registrando um aumento de 2% em relação ao mesmo período em 2019. A escalada violenta e desumana contra as mulheres tem se intensificado nos últimos anos, especialmente após o golpe de 2016, ganhando contornos cada vez mais cruéis desde a ascensão autoritária imposta pelo governo de Jair Bolsonaro e as forças fundamentalistas que sustentam o seu projeto de morte.
Além de denunciar o aumento da violência doméstica, do abuso sexual dentro das famílias e dos casos de feminicídio íntimo – cometido por companheiros e familiares das vítimas -, a campanha quer discutir também a elevação dos casos de femincídio político – que é o assassinato e ameaças de morte contra mulheres eleitas para ocupar cargos nos parlamentos por todo o país -, e que na grande maioria são de mulheres negras e periféricas, a exemplo da candidata à prefeitura de Curralinho nas eleições de 2020, cidade do Arquipélago do Marajó (PA), assassinada pelo ex-marido, e da vereadora Marielle Franco, morta à tiros em 2018, crime de motivações políticas e que segue ainda sem solução pela Justiça brasileira.
“Esta campanha começou a partir da reunião de Vilma Reis, Márcia Tiburi e Tânia Palma, três mulheres militantes e que são referência no movimento feminista brasileiro. A partir delas mais e mais mulheres foram chegando e o número de ativistas engajadas foi crescendo e hoje a gente tem dezenas de mulheres que, articuladas com o Levante Nacional, estão também construindo e ampliando a articulação do Levante em seus estados e territórios”, explica Analba Brazão, educadora do SOS Corpo, ativista feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras e que tem construído o Levante Feminista desde o início das articulações.
Mulheres indígenas, negras e trans: alvos preferenciais da atual necropolítica de aniquilação das mulheres
No Manifesto da Campanha, construído à múltiplas mãos, corpos, experiências e vivências em territórios diversos, lançado no dia 12 de março, destaca o aumento dos crimes de ódio contra mulheres indígenas, mulheres negras, mulheres transexuais, lésbicas, militantes de esquerda e defensoras de direitos humanos, de diferentes idades. Ideias e atitudes feminicidas, misóginas ganham proporções desumanas ao reconhecer a impunidade através das omissões do Estado em coibir o avanço do feminicídio, seja pela falta de políticas pública e Leis de proteção às mulheres, seja pela própria atitude de gestores, legisladores e juristas ao reproduzirem estas ideias e atitudes. É também contra o Estado feminicida que o Levante Feminista Nacional se ergue.
O Manifesto já tem mais de 30 mil assinaturas e segue aberto a adesão. Cliquei no link para assinar e fazer parte dessa luta! >>> https://bit.ly/3rx9iEE
“A Campanha vai muito além de dar visibilidade a este problema social. Nós queremos que as mulheres parem de morrer, de serem mortas ao decidirem sair de um relacionamento abusivo ou que estejam na linha de frente de suas comunidades lutando por melhores condições de vida, que estejam em cargos de poder desafiando a ordem patriarcal em espaços de participação política e institucionais ou ainda, que não sejam negligenciadas e violentadas pelas instâncias de poder do Estado, como o Judiciário. Nós queremos as mulheres vivas”, reforça Analba Brazão.
O slogan da Campanha, #NemPenseEmMeMatar, está no singular para marcar que a maioria dos feminicídios íntimos ocorre entre um agressor próximo à vítima, mas não é somente esta mulher que morre ao ser assassinada. Morre com ela a família ao redor, suas filhas e filhos, mães, irmãs e irmãos, tias e avós que também sofrem com a perda da vida destas mulheres. Quem mata uma mulher mata a humanidade, como diz o outro mote da campanha. “Com isso queremos enfatizar que esta é uma luta prioritária para o movimento feminista, mas que dever ser prioritária também para os movimentos sociais. Porque sem as mulheres, não há projeto de futuro, não há democracia”, finalizou Analba.
Veja abaixo como foi o lançamento da Campanha:
fonte: https://soscorpo.org/?p=13848&