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“Chegou o momento de a política ser vista como digna, que afeta e envolve todas e todos, como conjunto, e não como uma esfera reduzida, elitizada e privatizada, onde alguns especialistas ou iluminados decidem sobre como temos que viver e quais são as opções existentes”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 18-05-2021. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Após a eleição paritária de candidatos constituintes no Chile, ocorrida durante os dias 15 e 16 de maio, os resultados são realmente esperançosos para a construção de um país diferente e que responda às principais demandas que foram impulsionadas, por diversos setores críticos, contra a democracia de mercado imposta nos últimos 30 anos.
Embora a votação total não tenha sido a desejada, apenas 43,35%, abaixo do que se votou no plebiscito nacional de 2020 por uma nova constituição, com 50,95% (ambas com voto voluntário e na pandemia), o papel desempenhado pelos movimentos sociais por meio de muitas candidaturas independentes, nesta eleição, é algo muito inédito na história do país.
O caso do amplo apoio à Lista do Povo, por exemplo, que reúne diferentes pessoas pertencentes a diversos movimentos sociais, pode ser visto como uma ruptura ao modo como o poder foi distribuído no Chile, nos últimos 30 anos, com políticas de costas para os cidadãos.
Isso somado a muitas candidaturas críticas eleitas, provenientes de organizações de base, que travaram uma luta a partir do movimento socioambiental, feminista e estudantil, com destaque para a crítica à mercantilização da vida e a geração de alternativas situadas territorialmente.
Destacam-se os nomes de Camila Zárate, do Movimento pela Água e os Territórios (MAT), Alvin Saldañas, da Rede pela Soberania Alimentar, Alondra Carrillo, Janis Meneses e Elisa Giustinianovich, da Coordenação Feminista 8M, Ivanna Olivares, Carolina Vilches, Manuela Royo e Yarela Gómez, do Movimento de Defesa da Água, a Terra e a Proteção ao Meio Ambiente (MODATIMA), entre outros e outras.
Além disso, é muito importante também o papel que será desempenhado por aquelas que foram eleitas através das cadeiras reservadas aos povos indígenas, como são os casos de Elisa Loncón, Natividad Llanquileo e a machi Francisca Linconao, na construção de uma democracia intercultural, plurinacional e descolonizadora.
Por outro lado, é muito positivo que os partidos da direita no Chile não tenham alcançado sequer 1/3 das pessoas eleitas como constituintes, o que os deixa completamente impossibilitados de vetar o que for acordado pela maioria na convenção para redigir a nova constituição.
Por esse mesmo motivo, é mais importante do que nunca que os partidos de esquerda no Chile, sejam os da ex-concertación, o partido comunista e a Frente Ampla, mas também os denominados independentes não neutros, deem grandeza ao momento histórico que nos encontramos como país.
Sendo assim, é central que não apenas respondam às demandas mais importantes da revolta social de 2019, como também levem a sério a participação e tenham uma relação direta e constante com as comunidades, por meio de assembleias e conselhos autoconvocados, para tomar as respectivas decisões sobre os conteúdos desta nova constituição.
Por isso, aqueles que estão prestes a fazer grandes transformações, através desta convenção constitucional, precisam se posicionar criticamente em relação aos presos políticos da revolta, os presos políticos mapuche e contra a impunidade daqueles que violaram os direitos humanos, a partir de outubro de 2019.
Sabemos que a democracia representativa ficou curta no mundo, sendo capaz de legitimar as violações aos direitos humanos, como ocorreu no Chile. Por essa razão, é necessário incentivar formas mais horizontais e coletivas de fazer política, sem caudilhos, onde sejam gerados novos mecanismos de participação direta, que permitam construir um novo horizonte transformador.
Nestes últimos 30 anos, o significado do político se empobreceu a tais níveis, reduzido ao partidário, que aqueles que foram eleitos e eleitas como constituintes têm uma responsabilidade muito maior do que escrever ou não uma nova constituição, devolvendo o sentido da política a um país que, enfim, se levantou para exigir mais dignidade.
Por isso, a necessidade de politizar tudo, por meio desta nova convenção constitucional no Chile, para deixar para trás sistemas de vida centrados na concorrência entre pessoas e em uma suposta liberdade individual, principalmente de consumo, totalmente desconectada de seu ambiente, que esqueceu que nós, seres humanos, somos seres relacionais, interdependentes e parte de um sistema vivo chamado Terra.
Chegou o momento de a política ser vista como digna, que afeta e envolve todas e todos, como conjunto, e não como uma esfera reduzida, elitizada e privatizada, onde alguns especialistas ou iluminados decidem sobre como temos que viver e quais são as opções existentes.
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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/609369-chile-uma-convencao-constitucional-pela-dignidade
Os ventos do Chile
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Por JOANA SALÉM VASCONCELOS*
Breve análise das eleições para a Convenção Constitucional.
Desde outubro de 2019, o Chile vive uma grande erupção social e uma crise de hegemonia política. As elites chilenas assistem, atordoadas, ao transbordamento da luta popular por direitos, gratuidade, bem-estar e dignidade. Apesar dos entraves impostos pelo Acordo Pela Paz Social de 15 de novembro de 2019, que definiram um quórum conservador de 2/3 para a mudança constitucional; apesar da regulamentação restritiva da Convenção Constituinte, enquadrada nos marcos da geopolítica neoliberal; e claro, apesar da pandemia, as organizações populares seguiram sua construção política autônoma de outubro de 2019 até hoje, preparando-se para o confronto contra o maior entulho autoritário da ditadura: a Constituição de 1980.
Os governos democráticos de 1990 a 2021 se curvaram ao chamado “modelo chileno” e o tornaram ainda mais sofisticado, ampliando o mal-estar social. Mas o modelo da Constituição de 1980 se mostrou corroído e esgotado. Enquadrado em uma sociedade sem direitos desde o golpe de 1973, os chilenos foram lançados ao desamparo da sociedade neoliberal, ao individualismo de mercado e à guerra de todos contra todos.
O Estado Subsidiário, arquitetado por Jaime Guzmán e os Chicago Boys na ditadura, mercantilizou todas as esferas da vida e impôs à sociedade chilena os arbítrios das privatizações generalizadas em nome da liberdade das grandes corporações. A espoliação privada da terra, da água, dos recursos minerais e agrícolas, a perversa capitalização das aposentadorias, a mercantilização da educação e da saúde, foram promovendo um processo irreversível de desgaste do tecido social.
A campanha publicitária pela democracia, que disse “No” à Pinochet em 1988, tinha como slogan “la alegría ya viene”, mas a preservação do arranjo constitucional da ditadura impediu que a democracia entregasse sua promessa. O “pinochetismo sem Pinochet” comandou os últimos 30 anos de democracia no país.
Mas agora o “modelo chileno” está mais combalido do que nunca. Nas eleições de 15 e 16 de maio passado, os chilenos indicaram que a Convenção Constituinte será um evento democrático de grandes proporções, com força para refundar as relações entre Estado e sociedade em bases populares e verdadeiramente democráticas.
Os resultados eleitorais não se parecem com nada que eu já tenha visto. Os deputados independentes eleitos são 32% dos 155 membros da Convenção. Os deputados indígenas são 11%. Os três grandes blocos partidários somam 57%. Os independentes tiveram orçamentos pequenos e quase nenhum tempo de TV, mas obtiveram um terço dos votos, mostrando a corrosão do sistema partidário convencional. Entre os candidatos indígenas, os direitistas foram derrotados e os indígenas à esquerda venceram.
Até semana passada, muitos amigos me disseram que a pulverização das candidaturas poderia corroer a força eleitoral da esquerda. Era um reflexo da descentralização da revolta de 2019, um elemento positivo que poderia, na matemática eleitoral, se tornar negativo. Mas ocorreu o oposto: a força dos independentes desequilibrou o resultado em favor da esquerda.
Entre os blocos partidários, a direita teve 24% (Vamos por Chile – RN/UDI); o centro ficou com 16% (Lista de Apruebo – ex Concertación); e as esquerdas com 18% dos deputados (Apruebo Dignidad – PC/FA).
Entre os independentes, a Lista del Pueblo, de esquerda, teve 15%. A Lista Nueva Constitución, de centro-esquerda, teve 7%. Ainda há 8% dos independentes eleitos sem lista, com candidaturas de perfil local cuja posição ideológica ainda precisa ser mapeada.
Em resumo, temos:
Direita (Vamos por Chile): 24%
Centro-Esquerda (Apruebo + Nueva Constitución-ind): 23%
Esquerda (Apruebo Dignidad + Lista del Pueblo-ind): 34%
Indígenas (nenhum da direita): 11%
Independentes sem lista: 8%
A direita foi posta no canto do ringue. A arquitetura constitucional de Jaime Guzmán está prestes a ser desarmada.
*Joana Salém Vasconcelos é doutora em história pela USP. Autora de História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (Alameda).
Publicado originalmente em Portal Contrapoder.
fonte: https://aterraeredonda.com.br/os-ventos-do-chile/