Regional do Cimi alerta para rápido crescimento dos casos de coronavírus entre indígenas no Mato Grosso do Sul, agravado pela situação de crise humanitária na reserva indígena de Dourados
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Indígenas Guarani e Kaiowá em Dourados (MS). Foto: Egon Heck/Cimi
“Os povos indígenas que perdem suas terras e meios de subsistência são empurrados para uma maior pobreza, taxas mais altas de desnutrição, falta de acesso a água potável e saneamento, assim como, a exclusão de serviços médicos, que por sua vez, os torna particularmente vulneráveis a doenças”.
Novo Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, Sr. José Francisco Cali Tzay
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul vem a público demonstrar imensa preocupação com o aumento exponencial dos casos registrados entre os Kaiowá e Guarani, na Grande Dourados (MS), e responsabilizar os órgãos de Saúde Estadual e Federal, pelo começo do que pode se tornar uma tragédia amplamente anunciada.
Fato é que, apesar de todos os exemplos técnicos das características de contágio da covid-19, se observa: grave letargia nas ações; inaplicabilidade dos planos de contingência; falta de recursos financeiros, estruturais e humanos, que se agrava com a negligência e o subterfúgio de que há conflito de competência; e omissão quanto aos trabalhadores indígenas em frigoríficos, resultando no atual estado de transmissão comunitária, não só na maior reserva indígena do país, bem como as demais do seu entorno.
Entre os dias 10 e 11 de maio, identificou-se que havia uma indígena com os sintomas característicos da covid-19, uma mulher de 35 anos, moradora da reserva de Dourados e trabalhadora da unidade frigorífica da JBS do município.
Só estas informações já nos fazem pensar numa série de fatos que foram totalmente desconsiderados, desde as primeiras ações dos órgãos de saúde, quais sejam: (i) as já conhecidas altas taxas de contágio da covid 19; (ii) as altas taxas de contágio e transmissão registradas em frigoríficos; (iii) a janela imunológica do vírus na fase de transmissão; (iv) a situação de crise humanitária e de superpopulação pela qual passa a reserva; (v) a realidade de lares multigeracionais e ampliados pela conformação das parentelas; (vi) hábitos culturais e alimentares considerados altamente transmissíveis; (vii) e ainda o fato de haver desinformação nas comunidades indígenas quanto aos cuidados preventivos à covid-19.
Todos estes fatos não foram suficientes para que a indígena fosse imediatamente retirada da aldeia, juntamente com todos aqueles que tiveram contato com ela, e abrigada em espaço de isolamento adequado e oportuno. Pelo contrário, ela foi orientada a cumprir a quarentena em casa durante o intervalo de aguardo do resultado do teste, aumentando o já previsível risco de contágio.
No dia 12 de maio, o boletim do Distrito Sanitário Especial Indígena Mato Grosso do Sul (DSEI-MS) apontava outros cinco casos suspeitos, testados pela ação preventiva conhecida como “sentinela”. Já o resultado da primeira indígena sintomática só saiu no dia 13 de maio, confirmando, assim, o primeiro caso entre indígenas do Mato Grosso do Sul, conforme amplamente noticiado.
Considerando a janela de contágio, o vírus poderia estar circulando há pelo menos uma semana entre os trabalhadores que moram na reserva, com possibilidade de contágio ainda mais evidente nos dias que se seguiram à identificação do primeiro caso confirmado.
Frente a esta situação, denunciamos que os órgãos de saúde envolvidos assumiram conscientemente o risco de propagação do novo coronavírus. No dia 14 de maio, o DSEI-MS apontou três casos confirmados, ou seja, a quantidade havia triplicado em menos de 24 horas.
O agravante é que, ao longo deste intervalo, foram sendo coletadas informações que davam conta não só da gravidade da situação, mas da urgência em se alterar radicalmente os protocolos de contenção da doença até então utilizados. Descobriu-se, por exemplo, que eram 43 os indígenas que tiveram contato com a primeira infectada, tanto por trabalharem na mesma sessão do frigorifico, quanto por utilizarem o mesmo ônibus de serviços, ambos da JBS.
No dia 15 de maio, menos de 48 horas depois do primeiro caso positivo, o DSEI-MS registrou dez novos casos entre indígenas da reserva de Dourados, sendo sete deles entre os colegas de trabalho do frigorífico e três crianças de familiares, tendo elas 4, 7 e 9 anos de idade. Ou seja, as ações até aquele momento já se mostravam ineficazes e o contágio comunitário era uma realidade na reserva.
Foi neste momento que a Aty Guasu Kaiowá e Guarani, assembleia política e de direito dos Povos Guarani e Kaiowá, emitiu uma carta denunciando a gravidade desta realidade em todas as aldeias do Cone Sul do Estado, que reúne mais de 50 mil pessoas, estabelecendo o “estado de emergência” e denunciando com grave preocupação a inoperância dos setores da saúde em relação ao casos de contágios na Reserva.
A confirmação destes casos obrigou, tardiamente, mudanças radicais quanto aos protocolos de atendimento e a busca por espaços para internação e isolamento dos indígenas contaminados e seus familiares pertencentes a grupos de risco fora da aldeia. Naquele momento a situação já se encontrava fora de controle, tanto que o boletim emitido no dia 16 de maio pelo DSEI-MS apontou 77 casos suspeitos, representando a ampla testagem em andamento pelo Dsei e pela Secretaria de Estado da Saúde. Em meio a este contexto de urgência, se buscou o apoio da Diocese de Dourados, que cedeu um espaço para o acolhimento dos familiares assintomáticos de indígenas infectados.
Hoje, dia 18 de maio, cinco dias depois do primeiro caso, os números divulgados pelo DSEI-MS confirmam 30 casos de infecção por covid-19 entre indígenas na região de Dourados, corroborando dados já apresentados, mais cedo, pela Secretaria estadual de Saúde de Mato Grosso do Sul (28 casos). Dois destes casos ocorreram na aldeia Lagoa Rica, no município de Douradina, distante 50 quilômetros de Dourados, onde foram registrados os demais. O DSEI não especifica a gravidade dos casos.
Diante deste quadro aterrorizante e da possibilidade de haver muitas mortes de pessoas Kaiowá e Guarani, e considerando as inúmeras recomendações feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela relatora da ONU para os direitos dos povos indígenas Victória Tauli-Corpuz, o Cimi:
- Responsabiliza as autoridades estaduais e federais pelo contagio e disseminação da covid-19 entre os indígenas Guarani e Kaiowá;
- Exige a responsabilização da JBS Foods Seara por não ter adotado as medidas protetivas e alternativas aos trabalhadores indígenas, insistindo na retomada das atividades laborais dentro do frigorífico;
- Requer o aumento significativo, específico e emergencial de recursos humanos, financeiros e estruturais para o combate à pandemia. Torna-se inadmissível que os EPIs, alimentos, materiais de higiene e outros insumos estejam em falta e que para obtê-los haja necessidade de campanhas de doações;
- Reconhece o trabalho incondicional de servidores públicos estaduais e federais, que por possuírem amor à causa, dedicam suas vidas na proteção destas comunidades, mesmo sem condições dignas de trabalho;
- Exige mais investimentos de recursos públicos estaduais e federais para a implementação de ações de autoproteção das comunidades;
- Requer que haja, de imediato, a testagem em massa, em todas as aldeias do Estado, principalmente nos municípios onde foram registrados casos positivos da covid-19;
- Pede a construção de hospitais de campanha para o atendimento específico da população indígena no Estado;
- Cobra mais investimentos para as ações preventivas nas aldeias do Sul do Estado, reforçando equipes, capacidade de testagem e espaços de acolhida fora das aldeias;
- Alerta para o risco de colapso do sistema de saúde da cidade de Dourados e os riscos de medidas que considerem a militarização das reservas indígenas;
- Apoia incondicionalmente a autodeterminação das comunidades e do movimento indígena e exige que as autoridades respeitem seus direitos à consulta livre, prévia e informada e de participação em decisões que os afetem, principalmente as relacionadas a ações de prevenção e contenção do contágio comunitário;
- Agradece o testemunho da Diocese de Dourados, pela cessão de espaços de acolhida dos familiares que testaram negativo e que irão cumprir quarentena fora da aldeia;
- Conclama a comunidade nacional e internacional para que acompanhe a realidade indígena no Mato Grosso do Sul e com isso impeça possíveis crimes e atrocidades contra os Kaiowá e Guarani caso estas medidas não sejam efetivadas.
Campo Grande, 18 de maio de 2020
Conselho Indigenista Missionário – Regional Mato Grosso do Sul
fonte: https://cimi.org.br/2020/05/nota-do-cimi-ms-sobre-pandemia-covid-19-entre-kaiowa-guarani/
Relator das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas afirma que ameaças às comunidades vão além da covid-19
“A covid-19 está devastando as comunidades indígenas do mundo e não se trata apenas de saúde”, alerta especialista da ONU
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José Francisco Cali Tzay assumiu há pouco mais de uma semana a relatoria, antes guiada por Victoria Tauli-Corpuz. Crédito da foto: U.S. Mission Geneva/ Eric Bridiers
POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO – NAÇÕES UNIDAS
GENEBRA (18 de maio de 2020) – O novo Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Cali Tzay, expressou hoje sua grave preocupação com o impacto devastador que a pandemia da COVID-19 está causando nos povos indígenas, algo muito além da ameaça à saúde.
“Todos os dias recebo mais relatórios de todos os cantos do mundo sobre como as comunidades indígenas são afetadas pela pandemia da COVID-19 e estou profundamente preocupado em ver que nem sempre se trata de problemas de saúde.
Os estados de emergência estão exacerbando a marginalização das comunidades indígenas e, nas situações mais extremas, está ocorrendo uma militarização de seus territórios.
Está-se negando aos povos indígenas sua liberdade de expressão e associação, enquanto os interesses comerciais estão invadindo e destruindo suas terras, territórios e recursos.
Consultas com povos indígenas e também avaliações de impacto ambiental estão sendo suspensas abruptamente em alguns países para forçar a execução de megaprojetos relacionados ao agronegócio, mineração, barragens e infraestrutura.
Os povos indígenas que perdem suas terras e meios de subsistência são empurrados para uma maior pobreza, taxas mais altas de desnutrição, falta de acesso a água potável e saneamento, assim como, a exclusão de serviços médicos, que por sua vez, os torna particularmente vulneráveis a doenças.
Porém, diante dessas ameaças e em meio a elas, as comunidades indígenas que conseguiram resistir melhor à pandemia da COVID-19 são as que alcançaram autonomia e autogoverno, permitindo que administrem suas terras, territórios e recursos, e garantir a segurança alimentar através de suas culturas tradicionais e da medicina tradicional.
Agora, mais do que nunca, os governos ao redor do mundo devem apoiar os povos indígenas a implementar seus próprios planos de proteção para suas comunidades e participem na elaboração de iniciativas nacionais de modo a garantir que elas não os discriminem.
Os Estados devem garantir que os povos indígenas tenham acesso a informações sobre a COVID-19 em seus idiomas e que medidas especiais urgentes sejam adotadas para garantir a disponibilidade e o acesso a serviços médicos culturalmente adequados. O fato de as unidades de saúde pública serem frequentemente escassas nas comunidades indígenas constitui em um grande desafio.
Os direitos ao desenvolvimento, a autodeterminação e as terras, territórios e recursos devem ser garantidos para que os povos indígenas possam administrar esses tempos de crises e promover as metas globais de desenvolvimento sustentável e proteção do meio ambiente.
A pandemia está nos ensinando que precisamos mudar: temos que valorizar o coletivo em detrimento do indivíduo e construir sociedades inclusivas que respeitem e protejam a todos. Não se trata apenas de proteger nossa saúde.”