Depois e além das bruxas. Artigo de Ritanna Armeni

O fato de que a Igreja teme as mulheres e, mesmo assim, quer controlá-las e silenciá-las é até óbvio. Menos óbvia é a resistência que continua nos séculos, a teimosia com que se repropõe a transgressão de uma religiosidade e de um carisma femininos.

A opinião é de Ritanna Armeni, jornalista, apresentadora de TV e feminista italiana, em artigo publicado no caderno Donne Mondo Chiesa, do jornal L’Osservatore Romano, de março de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

“Lá está a bruxa! Aí vem a bruxa! À morte! À fogueira! Preparem o fogo! Acendam a fogueira! Chegou a bruxa!”

Era isso que gritavam pelas ruas, das casas e das varandas os habitantes de Zardino, no belo romance de Sebastiano Vassalli “La chimera”, na chegada da carruagem com a jovem que seria queimada na fogueira, em um dia qualquer do século XVII, e Antonia é uma jovem qualquer, que tem a única culpa de ser bela e inteligente, e de enviar, na sua vida bastante simples, sinais de um inconformismo indesejável. Basta isso para que o pároco e os habitantes do vilarejo a definam como bruxa e a façam arder no fogo.

Quantos Antonias existiram ao longo da história? Quantas mulheres foram definidas como bruxas e sofreram uma morte atroz? Na literatura, encontram-se muitas delas. Histórias dramáticas e chocantes são contadas por VassalliManzoniEcoSciascia (as primeiras que vêm à mente desta que escreve).

Muitas também no cinema. Lembram-se da bruxa do maravilhoso “Dies Irae”, de Theodor Dreyer? As bruxas fazem parte do imaginário, da história e muitas vezes voltam também na crônica.

Recentemente, a diocese católica de Eichstatt, na Baviera, pediu desculpas pela caça a mulheres inocentes que ocorreu na Alemanha entre os séculos XV e XVIII. Acusadas de conspiração com o diabo, foram atingidas 25.000 pessoas, em sua maioria mulheres. “Uma ferida sangrenta na história da nossa Igreja”, disse o bispo Gregor Maria Hanke.

Os estudos mais recentes do Vaticano, porém, apresentam hoje outros números e outros julgamentos. A comissão histórico-teológica instituída para o Jubileu, cujos resultados foram divulgados em 2004, desmascarou com dados em mãos a “lenda negra” que envolveu durante séculos a Inquisição, o tribunal eclesiástico desejado por Paulo III. Apenas quatro anos antes, por ocasião do Jubileu, João Paulo II havia pedido solenemente perdão pelos pecados cometidos pela Igreja, mas os especialistas, que enquanto isso estavam trabalhando, divulgaram que os dados sobre a operação da Inquisição não eram aqueles que se acreditava, que a caça às bruxas não tinha os números que haviam sido difundidos durante séculos.

É verdade que, naqueles anos, houve dezenas de milhares de processos, mas apenas 1,8% se concluíram com a fogueira. Os recursos à tortura não foram tão frequentes. Um exemplo: dos 125.000 processos da Inquisição espanhola, apenas 59 acabaram com a condenação à fogueira. A Inquisição portuguesa queimou quatro pessoas, e a italiana, 36. No total, as fogueiras não ultrapassaram uma centena.

O objeto dos temores da Igreja, portanto não eram – como se acreditou durante séculos – as feiticeiras, as fornecedoras de poções mágicas, as adoradoras de Satanás, as protagonistas dos sabás ou, como é provável, as mulheres especialistas em ervas e medicamentes que exerciam a medicina popular, as parteiras. Não eram elas, as mulheres, de quem a Igreja tinha medo entre os séculos XVI e XVIII.

E então? A luta contra as bruxas, as fogueiras, a violência contra mulheres inocentes – que existiu e certamente foi cruenta – ocorreram, mas principalmente na Idade Média, e não nos séculos seguintes, os da Inquisição, que foram objeto de estudo da comissão vaticana. E, sobre a Idade Média, a documentação é escassa. Ou talvez os dados ainda não foram suficientemente estudados.

De todos os modos, são menos claros do que os dos séculos seguintes e que revelam outros medos, outras lutas, outras discriminações.

Assim aconteceu que, no momento em que uma cortina se fechou contando uma verdade diferente sobre a Inquisição, outro telão se levantou, mostrando uma cena ainda mais surpreendente e contando uma história ainda mais trágica e mais interessante. Alejandro Cifres, diretor do arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, que, em junho de 2014, sediou uma jornada de estudos sobre a Inquisição e as mulheres, descreve com palavras claras o novo cenário.

“Na Idade Moderna, isto é, do século XVI ao século XVIII – diz –, as bruxas e as fogueiras foram episódios isolados e periféricos. Naquela época, as preocupações da Igreja eram bem diferentes.”

E outras eram as mulheres de que a Igreja tinha temor e reprimia. A Inquisição era um órgão “racionalista, cauto, moderado”. Bem distante, portanto, da imagem que foi transmitida dela ao longo dos séculos, e não estava preocupada com poucas figuras femininas marginais, mas sim “com a reforma protestante que se espalhava pela Europa, conquistando grandes países”. Ela estava engajada, portanto, principalmente na luta contra a heresia. E estava atenta e preocupada em conter o fenômeno da santidade afetada, das místicas, do poder dos mosteiros, da liberdade de expressão amplamente exercida pelas mulheres que beirava a heresia e podia ultrapassar a heresia.

O tribunal eclesiástico, portanto, se engajou não contra ingênuas plebeias especialistas em ervas ou com um mau caráter, mas sim “contra o carisma feminino que influenciava fortemente a sociedade, a Igreja e a política”.

O gênio feminino – reconhecido alguns séculos depois por João Paulo II – naqueles séculos se desenvolvia de forma imprevista, a Inquisição estava desconfiada, investigava, condenava e, acima de tudo, submetia-o a um controle férreo.

“Eu não usaria a palavra ‘medo’ – diz Cifres – mas sim ‘prepotência’. A Igreja, naqueles anos, pensava que controlava tudo, tinha uma excessiva confiança em si mesma e desconfiava de quem tinha poder. As mulheres tinham poder, os conventos o exerciam, as freiras eram muitas e eram protagonistas. Por isso, deviam ser contidas.”

O medo das mulheres – ou a prepotência da Igreja em relação a elas – no início da Idade Moderna foi amplo e sério. O cenário daqueles séculos está povoado de protagonistas pouco conhecidas que só há alguns anos se começou a descobrir e a estudar.

Do tribunal eclesiástico, foram postas sob acusação sobretudo as “santas falsas, as mulheres portadoras de profecias e de novos valores – confirma Gabriella Zarri, historiadora, autora da pesquisa “Le sante vive” –, mulheres que gozavam de prestígio religioso e político, consideradas capazes de eventos milagrosos e com grande seguimento popular”. Nós as reencontramos, contadas com cuidado e atenção, no texto “Donne e Inquisizione”, volume editado por Marina Caffiero e Alessia Lirosi.

E são tão numerosas, têm uma mentalidade tão flexível e elástica, até a transgressão aberta e repetida, que, escreve Marina Caffiero, “os arquivos da repressão são também aqueles que testemunham a liberdade. A força, mais do que a fraqueza das mulheres”.

Perdemo-nos nas centenas de histórias, biografias, narrativas. Mas o quadro geral é delineado com suficiente clareza. Quem são, portanto, os seres femininos que a Inquisição quer controlar e reprimir? No século XVI, as santas vivas ou as “bem-aventuradas do príncipe” ou as santas da corte que, no centro-norte da Itália, por meio do seu carisma, dão prestígio a quem reina. Por isso, elas intervêm com força na esfera política e determinam as decisões do poder.

Contrarreforma as varre do mapa, o modelo das hierarquias eclesiásticas não admite carisma e profecia, conjuga-os com a natural fraqueza das mulheres, olha-os com desconfiança e, sobretudo, controla as mulheres nos claustros, onde a religiosidade feminina e a sua transgressão está submetida às regras rígidas exercidas pelos confessores. Que querem controlar tudo, mas não conseguem.

Por exemplo, não conseguem supervisionar a escrita na qual – conta Marina Caffiero – permanece forte a aspiração ao prestígio e ao poder, além de um modelo de santidade totalmente feminino que, até no século XVII, consegue encontrar o caminho para se impor.

“O espírito profético transborda dos muros dos claustros”, explica a historiadora, e as visionárias e as profetisas continuam se afirmando “como figuras da veneração local, da peregrinação popular, de devoção até mesmo por parte de religiosos”. Assim, ganham mais uma vez autoridade e poder. Histórias ainda desconhecidas e fascinantes, de nobres e de plebeias que propõem a sua própria ideia de santidade, que afirmam dons proféticos e poderes carismáticos.

O fato de que a Igreja as teme e, mesmo assim, quer controlá-las e silenciá-las, o fato de que elas, quando a heresia de Lutero se espalha, podem ser consideradas perigosas para a hierarquia e usurpadoras do sagrado masculino é até óbvio. Menos óbvia é a resistência que continua nos séculos, a teimosia com que se repropõe a transgressão de uma religiosidade e de um carisma femininos.

“No fim do século XVII, o profetismo – é sempre Marina Caffiero que afirma – é o caminho obrigatório da expressão religiosa das mulheres, dada a exclusão do sacerdócio e da palavra pública e oficial.”

Ele resiste também ao século das Luzes, ao racionalismo do século XVIII que põe em cena no palco, no qual se desenrola há séculos a luta entre carisma e hierarquia, novas protagonistas. São as convulsionárias, as mulheres que, por meio da linguagem do corpo, mais uma vez querem influenciar nas escolhas e pretendem orientar vida e valores. São elas que tentam frear o recuo da Igreja perante a modernidade.

Mas nem por isso a suspeita em relação a elas se atenua. Mesmo atacada por uma modernidade que quer marginalizá-la, a Igreja continua tendo medo das mulheres. Que, no século XVIII e depois também no século XIX, continuam como “bruxas”, isto é, subversivas reais ou potenciais de uma ordem que não as contempla. E que, embora não sejam levadas à fogueira, são mantidas à margem.

Precisamente à luz da história e das histórias, é natural se perguntar: quanto desse medo permaneceu ainda hoje? Quanto ele ainda determina comportamentos e decisões?

fonte: http://www.ihu.unisinos.br/607546-depois-e-alem-das-bruxas-artigo-de-ritanna-armeni


 

“A corporação clerical não precisa das mulheres porque se basta.” Artigo de Cristina Simonelli

O binômio clero e mulheres não se sustenta, mas pode funcionar, pois os dois grupos são claramente distintos e reciprocamente excludentes: se você é mulher, você não faz parte do clero, e, respectivamente, se você faz parte do clero, evidentemente não é uma mulher.

A opinião é de Cristina Simonelli, teóloga leiga italiana, presidente da Coordenação de Teólogas Italianas e professora da Facoltà dell’Italia Settentrionale e do Seminário Arquiepiscopal de Milão.

O artigo foi publicado no caderno Donne Mondo Chiesa, do jornal L’Osservatore Romano, de março de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Entre porquinhos, lobos e bruxas, como se sabe, não há muita confiança, como ensina o famoso “Who’s Afraid of the Big Bad Wolf” – título original da cançãozinha “Quem tem medo do Lobo Mau?”, que quase tem vida própria, apresentando-se também em filmes cinematográficos, entre obras de bruxas, de casos de família –, com Virginia Woolf que brinca com a identidade wolf = lobo, mas também com o nome da romancista feminista – e cenários fóbicos de homens com ansiedade de desempenho.

Há pouco para se fazer piada, se poderia dizer, e menos ainda para se recorrer aos contos de fadas sobre a questão que aqui nos convoca. No entanto, precisamente a forma um tanto irônica e decididamente paradoxal do refrão parece-me adequada para abordar um problema muitas vezes formulado em torno de um binômio mulheres/Igreja, que, na minha opinião, simplesmente não se sustenta.

Por quê? Porque as mulheres fazem parte da Igreja, ou, melhor, para dizer com mais precisão, a Igreja simplesmente não existe sem as mulheres. O imaginário subentendido a frases como “a Igreja tem medo das mulheres” ainda é aquilo que faz com que, sobre a palavra “Igreja”, surjam as imagens do papa – às vezes sozinho, às vezes rodeado de bispos e cardeais, ou, em caso de propensão marcadamente democrática, com o acréscimo de padres e frades.

Não é difícil entender que tal imaginário é reforçado pelas mídias de todos os gêneros e espécies, que, porém, para a sua grande embora não total desculpa, não encontram motivos para dirigir as tomadas de câmera de outra forma e formular outras manchetes: muitas vezes, parece precisamente que quem está falando do Vaticano ou das cúrias das dioceses “é” a Igreja.

Obviamente, nem mesmo os bispos, pelo menos em média, quando especificamente questionados, diriam que “a Igreja são eles”, e teólogas e teólogos certamente não afirmariam tal coisa, pelo menos se foram formados depois do Concílio.

Portanto, as mulheres fazem parte da Igreja, ou, melhor, segundo as estatísticas e mesmo em um olhar apressado, elas também são a parte numericamente mais conspícua dela.

Então, talvez seria o clero? Seria possível ficar com a distinção recém-indicada e sugerir que se o sujeito que tem medo não pode ser a Igreja, mas poderia ser a sua comitiva ministerial, isto é, aquilo que, em um jargão bastante compreensível, pode ser definido como o clero, etimologicamente, “a parte escolhida”.

A partir desse ponto de vista, o binômio clero e mulheres pode funcionar, pois os dois grupos são claramente distintos e reciprocamente excludentes: se você é mulher, você não faz parte do clero, e, respectivamente, se você faz parte do clero, evidentemente não é uma mulher.

Assim, a reflexão está de pé e pode se estender em muitas direções: sobre as mulheres e a formação do clero, sobre a colaboração dos padres com as mulheres, sobre o matrimônio também, se falarmos de diáconos ou de padres católicos, mas não de rito latino.

No entanto, eu faria uma distinção a mais, porque esse modo de colocar o problema, no fim, também só funciona em parte. De fato, há também muitos padres e vários bispos que efetivamente não têm medo das mulheres. Há também alguns, talvez em menor grau, que, colaborando com respeito, também aprenderam a falar “a partir de si mesmos” e, portanto, a não serem “paladinos das mulheres” – o que eu certamente não pediria e que, pelo contrário, é mais do que paternalista –, mas sim a tematizar a própria parcialidade masculina. Nem todos, portanto: não o “clero”, assim como há muitas mulheres que não são a Mulher.

O clero como uma corporação clerical? Sim. O problema, portanto, não reside nos indivíduos, mas no grupo, na medida em que ele se move como uma espécie de corporação, que raramente se põe em discussão e eventualmente apenas em seu interior, ou em um plano espiritual ou moralista.

Um grupo que, embora residual do ponto de vista numérico e em forte fadiga sob muitos outros pontos de vista, não consegue encontrar a força para se repensar em um sentido mais amplo.

Essa forma de colocar a questão não está tão distante daquilo que o Papa Francisco indicou várias vezes como “clericalismo”: que não é uma contraposição entre quem desempenha um ministério ordenado e quem não, mas si uma forma doentia de o desempenhar e conceber. Só que, mesmo a partir desse ponto de vista, provavelmente seria preciso mais coragem para repensar não a periferia com maquiagem, mas sim o todo; mas aqui a discussão levaria longe.

Entretanto, é essa “corporação clerical” – que muitas vezes absorve até as melhores energias dos indivíduos – que tem medo das bruxas, isto é, que vê as mulheres como um problema e uma ameaça? Talvez. No fundo, porém, o medo, se acolhido e percorrido com honestidade, poderia abrir ao diálogo, assim como o desconforto acolhido e trabalhado poderia ser fecundo. É claro que o seria sempre mais do que a indiferença.

Muitas vezes, de fato, eu temo que o aspecto mais triste dessa questão possa ser recolhido em um horizonte muito menos nobre: a corporação, mais do que ter medo das mulheres, não precisa delas, porque, simplesmente, “se basta”.

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fonte: http://www.ihu.unisinos.br/607545-a-corporacao-clerical-nao-precisa-das-mulheres-porque-se-basta-artigo-de-cristina-simonelli

 

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