Ministro deixou de agir dias antes do colapso em Manaus pela falta de oxigênio nos hospitais, mostra documento do próprio ministério. Procurador-geral pede abertura de inquérito contra general

O Brasil soma mais de 216.000 mortes por covid-19 e é o segundo país com maior número de óbitos. Mas a avaliação de especialistas e pesquisadores é que a perda de muitas dessas vidas poderia ter sido evitada caso o Governo Bolsonaro e o Ministério da Saúde, sob comando do general da ativa Eduardo Pazuello desde maio de 2020, tivesse coordenado ações preventivas que envolvem, sobretudo, distanciamento social, e ações de planejamento e coordenação do SUS. Na semana que passou, o EL PAÍS publicou os resultados de uma pesquisa feita pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e pela Conectas Direitos Humanos que, analisando mais de 3.000 normas do Governo durante a crise sanitária, concluiu que houve “uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.
Desde a a eclosão da crise de Manaus, onde colapso do sistema de saúde envolve a falta de oxigênio para os pacientes, Bolsonaro e Pazuello estão ainda mais sob pressão para que sejam responsabilizados por seus atos na gestão da pandemia. Integrantes da sociedade civil e da oposição se mobilizam para propor ações criminais e, no caso de Bolsonaro, pedidos de impeachment. Neste sábado, o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu pedir a abertura de um inquérito para apurar a conduta de Pazuello na crise de Manaus. O ministro viajou para o Amazonas “sem passagem de volta”, anunciou o Ministério da Saúde.
Na cronologia de atos que põem agora Pazuello em xeque, parte dela refletida no documento da Procuradoria-Geral da República, o ministro, que é general da ativa, aparece estimulando medicamentos sem eficácia contra a doença, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, ou minimizando riscos da doença. Ele também não agiu mesmo sabendo dias antes do risco de colapso dos hospitais de Manaus por falta de oxigênio.
Pazuello foi alertado sobre falta de oxigênio em Manaus dias antes do colapso
Os hospitais de Manaus colapsaram no dia 14 de janeiro. Imagens do caos na capital da Amazônia devido à falta de oxigênio para pacientes, resultando na morte de pessoas internadas por asfixia, rodaram o país. A promotoria do Amazonas investiga se ao menos 50 mortes do período estão relacionadas à falta de oxigênio. Foi apenas nesse dia, no entanto, que o Ministério da Saúde preparava o envio emergencial de oxigênio em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) e o presidente Jair Bolsonaro dava por cumprido o papel de seu Governo.
Dias depois a Folha de S. Paulo revelou que o ministério recebera o primeiro alerta no dia 8 de janeiro. Até o dia 13, recebeu documentos diários da Força Nacional do SUS com detalhes sobre o caos que se avizinhava. “Rede colapsada no município: rh ativo em exaustão nos hospitais, as alas clínicas com superlotação, fornecimento do oxigênio em reserva em todos os hospitais da rede”, informava o relatório.
Os alertas partiram de um grupo de técnicos, mas também do Governo do Amazonas, da White Martins, empresa fornecedora dos cilindros de oxigênio, e até mesmo de uma cunhada de Pazuello. “O que você vai fazer? Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”, declarou o próprio ministro, ao contar sobre o alerta dado pela cunhada. A falta do insumo também atingiu cidades do interior e o Estado do Pará.
Remoção de pacientes de Manaus
Ainda sobre Manaus, o procurador-geral aponta no documento em que pede a abertura de um inquérito que Pazuello demorou em organizar a transferência de pacientes graves internados em Manaus, mesmo sabendo da demanda desde 6 de janeiro. “Apesar dessa recomendação e da informação de que os Estados disponibilizaram 345 leitos do SUS para apoio aos pacientes provenientes de Manaus, os primeiros deslocamentos ocorreram apenas em 15/1/2021 e, até o dia 16/1/2021, somente 32 pacientes haviam sido removidos, ou seja, menos de 10% da capacidade disponibilizada”, diz a petição de inquérito.
Pazuello promove “tratamento precoce” com medicamentos sem eficácia comprovada
Quando visitou Manaus poucos dias antes do colapso nos hospitais, Pazuello cobrou que os médicos iniciassem tratamento precoce em pacientes com suspeitas de covid-19. Lançou uma plataforma, chamada TrateCov, que indicava os seguintes medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença: difostato de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, doxiciclina e sulfato de zinco. Diante da repercussão negativa, a página foi tirada do ar nesta quarta-feira.
Os medicamentos sem eficácia, sobretudo a cloroquina e a hidroxicloroquina, são a principal aposta do Governo Bolsonaro para combater a pandemia. No início da crise sanitária, a comunidade científica cogitou a possibilidade de que esses medicamentos pudessem ter algum efeito contra a covid-19, mas pesquisas científicas descartaram essa possibilidade. Ainda assim, o Governo, nem o presidente, desistiram de sua aposta e fizeram o Exército aumentar a produção da cloroquina. Quando assumiu a pasta em maio —primeiro interinamente, e depois de forma definitiva—, Pazuello incluiu as medicações no protocolo oficial do Ministério da Saúde —assinado por subordinados do ministro— para casos leves de covid-19.
O ministro também sempre se manteve ao lado do presidente quando este promovia os medicamentos em suas lives semanais, encontros com apoiadores e aparições públicas. Segundo um levantamento da BBC Brasil, o Governo gastou cerca de 90 milhões de reais com medicamentos ineficazes.
Tanto o Bolsonaro como Pazuello garantem que se trataram com cloroquina e outro medicamentos quando foram infectados pelo coronavírus. Em um vídeo ao lado do presidente, o ministro da Saúde conta ter ficado “zero bala” depois de ter tomado os remédios. Todo esse estímulo teve consequências: não é raro ouvir o relato de pessoas que estão tomando esses remédios como medida preventiva, mesmo sem a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, com o colapso de Manaus e o início da vacinação, Pazuello vem tentando mudar o discurso, dizendo que nunca falou em tratamento precoce, mas sim em “atendimento precoce”.
Pazuello retarda plano de vacinação e acatou descrédito da Coronavac
Enquanto promovia medicamentos sem eficácia contra a covid-19, Bolsonaro colocava em dúvida a eficácia das vacinas, sobretudo a Coronavac. Enquanto o rival João Doria (PSDB), governador de São Paulo, apostava no acordo entre o Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac para o desenvolvimento da Coronavac, Bolsonaro qualificava o imunizante como “vacina chinesa”, adicionando tintas xenofóbicas ao descrédito do imunizante. Pazuello chegou a anunciar a aquisição da Coronavac em outubro, mas assim que a notícia foi divulgada se viu obrigado a recuar. E mergulhou de cabeça na guerra política da vacina alimentada por Bolsonaro e Doria.
O Governo passou a dizer que não gastaria dinheiro por um imunizante que ainda estava sendo testado. Apostava no acordo da Fiocruz para a produção da vacina da AstraZeneca/Oxford, mas renunciou a adquirir outros imunizantes já disponíveis, como o da Pfizer/BioNTech, Moderna ou Johnson & Johnson, além da própria Coronavac. Também passou a dizer que não seria obrigatório se vacinar e que os imunizantes são “experimentais” e arriscados. E defendeu que aqueles que recebam imunizantes assinem um termo de consentimento e já afirmou que não irá se vacinar.
Até o fim do ano passado, Pazuello não possuía um plano consistente para iniciar a vacinação, enquanto países como Reino Unido e Estados Unidos iniciavam suas próprias campanhas. Quando começou a apresentar um esboço do plano, sem nenhuma data para início da campanha nacional, seguia excluindo a Coronavac. O governador Doria aumentou a pressão e apresentou seu próprio calendário de vacinação, obrigando o Ministério da Saúde a apertar o passo. No início de janeiro, três meses após o veto bolsonarista à Coronavac, a pasta anunciou a aquisição de 100 milhões de doses da vacina. Só no dia 17, com a autorização de uso emergencial concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a vacinação pode finalmente começar.
Neste fim de semana, o Governo admitiu que recusou a oferta, no semestre passado, para comprar 2 milhões de doses da vacina Pfizer, em parceria com a BioNTech, a serem entregues no primeiro trimestre. A oferta foi revelada pela CNN Brasil. Agora, o Ministério da Saúde diz que as doses gerariam apenas “frustração” nos brasileiros. Há uma disputa mundial por doses de vacinas contra a covid-19 e há consenso entre os especialistas de que o Brasil deveria comprar a maior quantidade da maior quantidade de fornecedores possível para cobrir a demanda da população.
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise.
Carnificina brasileira
Ele agiu abertamente para sabotar o isolamento social e a busca pela vacina. Propagou a anticiência e foi omisso com a tragédia em Manaus. Tripudia sobre mais de 220 mil vidas perdidas na pandemia. Um criminoso está a solta — e é preciso pará-lo
Publicado 22/01/2021 às 17:19

No dia 29 de outubro de 2020, dias antes da eleição passada, ladeado pela sorridente ministra da agricultura Tereza Cristina Dias (DEM-MS), como autoridade presente para avalizar suas palavras diante do capital agrário nacional, Bolsonaro, paramentado com o uniforme da agremiação futebolística Sampaio Correia (MA), exibindo o guaraná Jesus, realizou mais uma “live” semanal de 60 minutos, no Facebook, para seus seguidores, num rito estrutural sistemático de sua tática política, cujo objetivo é manter acesa a crença de seus fiéis em sua mensagem, como ocorre em todo e qualquer fenômeno religioso.
Por volta dos 20 minutos, ele iniciou mais uma homilia publicitária da hidroxicloroquina como tratamento eficaz, afirmando textualmente: “a cada dia aparecem mais e mais estudos dizendo que a hidroxicloroquina reduz o número de mortes (por covid-19): quem toma hidroxicloroquina, nem vai para o hospital, muito menos vai ser entubado” (minuto 28). No minuto 33 ele muda de tática, sai da defesa e parte para o ataque à vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria internacional com a biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech, afirmando textualmente: “Querido governador de São Paulo, ninguém vai tomar a tua vacina. Procura outro. E eu, como governo, não vou comprar a tua vacina também não. Tá ok? Procura outro para pagar tua vacina”. E a ministra Tereza Cristina, sorridente ao lado, avalizando em mídia nacional essas putrefatas palavras do seu mito.
A vacina sino-brasileira, produzida pelo Instituto Butantã, foi testada na vida real, no meio de uma pandemia e naquelas pessoas que eram as mais expostas ao vírus. De uma amostragem de 9,2 mil participantes, apenas um número irrisório de 85 apresentaram casos leves de covid. E, destes casos leves, apenas três pessoas necessitaram de receber alguma assistência mais específica. No dia 17 passado, o estado de São Paulo saiu na frente, deu o pontapé ao plano de vacinação, obrigando Bolsonaro a sair em público, completamente decepcionado, admitindo a derrota de sua necropolítica.
No dia 16, a jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre Direito internacional e pandemias, foi entrevistada pela Rede CBN de rádio, afirmando textualmente que osatos normativos do governo Bolsonaro evidenciam a determinação de ir contra as medidas de isolamento como forma de prevenção contra o vírus. Somado a isso, registra-se o incentivo por parte do presidente da República para as pessoas saírem às ruas, porque sua tese perversa é a de que a covid-19 deve ser disseminada em meio à população.Por fim, como anotamos acima, ele faz sistemática propaganda para tratamento preventivo ineficaz. E o gado bolsonarista, de todas as classes e grupos sociais, apoia enfaticamente essa orientação política genocida. Para ele, as mortes são absolutamente irrelevantes: “morre quem é maricas, quem é bundão, quem é infeliz”. Não se trata, portanto, de omissão, mas de uma determinação bem definida de naturalização e banalização das mortes pela pandemia.
Deisy assevera que a tragédia de Manaus é um agravamento desta orientação, porque se em abril do ano passado, naquela capital, já havia pessoas morrendo na rua, na semana passada estavam morrendo dentro dos hospitais pela falta de insumos. Isso é bastante grave, como bem lembrou o ex-ministro da Saúde Mandetta, “oxigênio não acaba repentinamente, do dia para noite”. Inaceitável. Como esse agravamento se explica? Como o Ministério da Saúde permitiu que isso se repetisse? Quem será responsabilizado por essas mortes? Cadê o Ministério Público?
Importante esclarecer, segundo a especialista, que o Supremo Tribunal Federal (STF), jamais isentou o governo federal pela responsabilidade do combate à pandemia. O STF apenas ratificou o que prevê a Constituição, em seus artigos 23 e 24, que há uma competência comum entre União, estados e municípios na proteção da saúde pública.Portanto, o Supremo nunca disse que a União não tem responsabilidade nesta matéria.
Para a carnificina brasileira acabar, esse governo federal não pode continuar agindo assim. O Congresso brasileiro precisa cumprir o seu papel e estancar com a necropolítica instalada no país desde 2019. São vidas ceifadas de forma perversa, dia após dia. Hoje já são quase 220 mil mortos (pelos dados oficiais). Infelizmente, especialistas da área calculam que este número seja no mínimo 50% superior.
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