3 anos sem Marielle. 14 perguntas sem resposta

Neste domingo, completam-se 3 anos do assassinato da ativista e seu motorista Anderson Gomes. Relembre as irregularidades da investigação e as 14 perguntas que seguem sem resposta

Marielle Franco
Marielle Franco (Foto: Mídia Ninja)

 247 – Neste domingo (14), completam-se 3 anos que a ativista, socióloga e política Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados brutalmente pelas milícias extremistas do Rio de Janeiro.

Até hoje, o PM Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Queiroz, apontados pelas autoridades do Rio de Janeiro como os responsáveis, não foram julgados.

Durante a investigação, testemunhas foram dispensadas, confissões forçadas e “empecilhos técnicos” impediram a análise de imagens.  

No dia do crime, segundo o depoimento de um porteiro, Élcio acessou o condomínio onde moram Lessa e Jair Bolsonaro. Ele iria à casa 58, que pertence ao presidente.

Segundo o Jornal Nacional, o porteiro disse ter reconhecido a voz de quem atendeu como sendo a do “Seu Jair”.

O Instituto Marielle Franco fará um tuitaço hoje em memória.

O Instituto lançou um dossiê com todas as informações que se têm do caso e uma linha do tempo. Ele levanta 14 perguntas, que até hoje seguem sem resposta:

  • Quem mandou matar Marielle?
  • Qual a motivação do mandante do crime?
  • Por que ainda não se avançou na investigação sobre a autoria intelectual do crime?
  • Qual é a ligação do responsável pela clonagem do carro com o crime e o grupo de milicianos ligado a Adriano Nóbrega e o Escritório do Crime?
  • Qual é a conclusão das investigações sobre o extravio das munições e armas da Polícia Federal usadas no crime?
  • Quem desligou, como e a mando de quem as câmeras de segurança do trajeto que Marielle e Anderson percorreram?
  • Por que não existe uma atuação coordenada das instâncias em níveis estadual e federal sobre a elucidação do caso de Marielle e Anderson?
  • Por que até agora a Google não entregou os dados solicitados pelo MPRJ e a Polícia Civil para a investigação?
  • Por que houve tantas trocas no comando da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, responsável pela investigação do caso Marielle?
  • Houve tentativa de fraude nas investigações? Por quem?
  • Foi aberto um inquérito pela Polícia Federal para apurar as interferências na investigação do caso. Por que em meio a estas investigações, o superintendente regional da Polícia Federal do Rio de Janeiro foi trocado?
  • O presidente Jair Bolsonaro informou que Ronnie Lessa foi ouvido pela polícia federal sobre o caso do porteiro. Este interrogatório foi entregue ao Ministério Público e à Polícia Civil do Rio de Janeiro?
  • Por que o governo brasileiro não forneceu todas as informações demandadas pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas?
  • Por que as recomendações da Comissão Externa realizada no âmbito do Congresso Nacional no ano de 2018 ainda não foram implementadas?

Apenas 11% dos homicídios no Rio de Janeiro são solucionados, segundo o Instituto Sou da Paz. Mas o crime político vai muito além dos problemas tradicionais. 

fonte: https://www.brasil247.com/brasil/3-anos-sem-marielle-14-perguntas-sem-resposta


 

Caso Marielle: três anos de um crime que chocou o Brasil

A pergunta “Quem mandou matar Marielle?” continua em aberto no caso que expôs os tentáculos da milícia no Rio. Investigações foram marcadas por tentativas de obstrução e provocaram constrangimento para o clã Bolsonaro.

Jean-Philip Struck – DW    

Brasilien Trauer Marielle Franco

Homenagem a Marielle Franco em São Paulo. Assassinato da vereadora causou comoção internacional

O assassinato da vereadora Marielle Franco completa três anos neste domingo (14/03), ainda sem que investigadores tenham apontado os mandantes do crime e a motivação. Marcado por reviravoltas e perguntas sem resposta, o caso se tornou um símbolo da violência política no Brasil e escancarou os tentáculos do crime organizado no Rio de Janeiro. “Três anos são muito tempo […] Está mais do que na hora de ter uma resposta”, disse Marinete Silva, mãe de Marielle, em entrevista à DW Brasil nesta semana.

Até 2018, Marielle, então com 38 anos, ainda não era muito conhecida fora do Rio de Janeiro. Vereadora de primeiro mandato e atuante em causas sociais, especialmente na luta antirracista e na promoção de pautas feministas e LGBTQ, Marielle logo se transformaria tragicamente num símbolo da violência no Brasil.

Brasilien Gedenken an Marielle Franco

Marielle Franco em fevereiro de 2018

Na noite de 14 de março daquele ano, Marielle deixou um debate na ONG Casa das Pretas, no centro do Rio. Pouco tempo depois, o veículo foi emboscado e alvo de tiros no bairro do Estácio, quando seguia para a casa da vereadora. Marielle e o motorista Anderson Gomes morreram na hora. Uma assessora da parlamentar, que também estava no automóvel, sobreviveu – ela deixaria o país posteriormente. O ataque, cuidadosamente planejado, tinha a marca de profissionais – e logo seria revelada a participação de ex-agentes do Estado.

Suspeitos presos, mas nada de um mandante

Desde então, uma das perguntas do caso parece já ter sido respondida: “Quem matou Marielle?” Dois suspeitos foram presos: o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz, acusados de envolvimento com milícia. A investigação apontou que Lessa teria efetuado os disparos, enquanto Queiroz teria conduzido o veículo que seguiu Marielle.

Armas apreendidas com Ronnie Lessa

Armas apreendidas em endereço de Ronnie Lessa no Rio

Em julho de 2019, Lessa foi preso no mesmo condomínio da Barra da Tijuca em que o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos possuem imóveis. Em outro endereço do policial, investigadores encontraram 117 fuzis de assalto incompletos. Além do homicídio, Lessa foi indiciado por tráfico internacional de armas. Os dois suspeitos ainda não foram julgados, três anos após o crime.

Em junho de 2020, veio uma nova rodada de prisões: desta vez um suspeito de ter atirado as armas de Lessa ao mar. Assim com outros envolvidos no caso, ele também usava uniforme: um sargento do Corpo de Bombeiros, que vivia numa mansão de luxo na Zona Oeste do Rio. Em outubro de 2019, outros quatro suspeitos, entre eles parentes de Lessa, já haviam sido presos. O carro e a arma usados pelos assassinos nunca foram encontrados.

Quem mandou mantar Marielle?

Uma série de políticos do Rio de Janeiro figuraram como suspeitos de terem ordenado o crime. A lista chegou a incluir o vereador Marcelo Siciliano (PHS), o ex-vereador Cristiano Girão e o ex-deputado Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Todos negam qualquer envolvimento.

O caso de Siciliano também revelou tentativas de obstrução. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República denunciou dois policiais federais, uma advogada e Domingos Brazão por tentativa de atrapalhar as investigações. Eles teriam plantado uma testemunha para implicar Siciliano e desviar o foco dos verdadeiros mandantes.

Uma das linhas de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público aponta que o assassinato de Marielle foi encomendado como uma forma de vingança contra o atual deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), colega de partido de Marielle e que se notabilizou por sua atuação contra as milícias da cidade. Marielle trabalhou durante uma década no gabinete de Freixo antes de ser eleita vereadora. 

Em dezembro, uma reportagem da revista Veja apontou que milicianos ligados ao Escritório do Crime, uma organização de matadores do Rio, se filiaram ao Psol logo depois das eleições de 2016, provavelmente para monitorar as atividades de membros do partido.

 À época do crime, a segurança pública Rio de Janeiro também estava sob intervenção federal há apenas um mês. Num primeiro momento, houve especulações se o assassinato de que o assassinato poderia ter sido uma reação de grupos criminosos.

Em três anos, as investigações foram lideradas por três diferentes delegados. O primeiro, Giniton Lages, deixou o caso logo após a prisão dos dois executores. O segundo, Daniel Rosa, foi substituído por Moysés Santana em setembro de 2020, depois de mudanças no comando do governo do Rio. As investigações ainda foram objeto de uma disputa em 2019 envolvendo a discussão sobre uma possível federalização, com a mudança de alcançada da Polícia Civil para a Polícia Federal, mas a família da vereadora se opôs.

No início de março, o Ministério Público do Rio anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar o caso. O grupo será chefiado pela promotora Simone Sibílio, que esteve à frente do caso no MP-RJ durante a maior parte do tempo. A promotora Letícia Emile, que atuava ao lado de Sibílio, integra a equipe. Anielle Franco, irmã da vereadora e diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, avaliou positivamente a iniciativa.

Já a viúva do motorista Anderson Gomes, Ágatha Reis, reconheceu a importância da criação força-tarefa, mas criticou a demora para que houvesse esse avanço nas investigações. “Levou tempo demais. Marielle era uma parlamentar em exercício. Portanto, uma força-tarefa deveria ter sido criada já no início”, disse Reis na sexta-feira, durante um lançamento de um dossiê com uma linha do tempo do caso e 14 questões consideradas essenciais para a investigação.

Sombra sobre o clã Bolsonaro

Os assassinatos de Marielle e Anderson ainda criaram constrangimento para o presidente Jair Bolsonaro. Além de um de seus vizinhos ter sido apontado como executor da vereadora, a família presidencial tinha ligações com outro nome que figurou entre suspeitos de envolvimento no crime, o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, um notório miliciano do Rio.

Segundo o Ministério Público, a família de Adriano participava do esquema de desvio de dinheiro público do filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio. Adriano foi morto num cerco policial na Bahia em fevereiro de 2020, quando estava foragido. O caso Marielle e a investigação das “rachadinhas” se entrelaçaram diversas vezes nos últimos dois anos.

Condomínio Vivendas da Barra

Apontado como executor do crime, Lessa vivia no mesmo condomínio em que Bolsonaro e seu filho Carlos têm casas

Em 2019, um desdobramento das investigações da morte de Marielle que mirou a atuação de milícias na Zona Oeste do Rio resultou na apreensão do celular da ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que atuou como assessora de Flávio Bolsonaro. Mensagens de Danielle com Fabrício Queiroz, apontado como “operador” das rachadinhas, jogaram luz sobre detalhes do esquema.

Em outro lance estranho do caso, o porteiro do condomínio de Bolsonaro (e Lessa) apontou que na noite do crime, o então deputado e atual presidente autorizou a entrada Élcio de Queiroz, o motorista que dirigiu o carro usado na emboscada.

A versão foi logo apontada como falsa, já que Bolsonaro estava em Brasília naquela noite. O porteiro logo voltou atrás, mas o caso provocou a queda de uma das promotoras do caso, que desmentiu o porteiro e teve sua imparcialidade questionada após imagens das suas redes sociais mostrarem que ela fez campanha para Bolsonaro em 2018.

Além dessas ligações, a própria postura do clã Bolsonaro diante do crime e os elogios do presidente a milicianos em seus tempos de deputado também ficaram em evidência ao longo da investigação. Desde o assassinato de Marielle, os membros da família presidencial se dividiram entre silêncio, desprezo e em minimizar a importância do crime ao longo de três anos de investigações.

Bolsonaro até se viu na posição de ter que negar em 2019 qualquer relação com os homicídios em entrevista a uma rede de TV dos EUA, numa situação inédita para um chefe de Estado brasileiro. “Que motivo eu teria para encomendar um assassinato desses?”, disse.

A memória da vereadora também costuma ser um alvo constante da extrema direita bolsonarista, que costuma espalhar mentiras sobre sua atuação e piadas macabras sobre sua morte nas redes sociais.

Legado

A forma como o crime escancarou a ousadia dos milicianos do Rio de Janeiro e as dificuldades nas investigações não têm demovido figuras que pretendem manter o legado de Marielle vivo. Nas eleições municipais de 2020, a viúva da vereadora, Mônica Benício, foi eleita para uma vaga na Câmara do Rio de Janeiro. À época, ela afirmou à DW Brasil que pretende reapresentar projetos da sua antiga companheira.

Mural em homenagem a Marielle em Berlim

Mural em homenagem a Marielle em Berlim

A família de Marielle também lançou um instituto que leva o nome da ex-vereadora. Em setembro de 2020, o Instituto Marielle Franco inaugurou o site da Agenda Marielle, que contém um agenda de compromissos e práticas elaborados a partir de discursos e projetos de lei da ex-parlamentar.

Ao todo, 81 candidatos que se comprometeram com a agenda foram eleitos em 54 cidades do Brasil nas eleições municipais de 2020. “Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala”, disse a vereadora Benício em entrevista à DW Brasil.

A memória de Marielle também sido preservada e promovida no exterior. Em 2019, a prefeitura de Paris inaugurou um jardim em homenagem à ex-vereadora. Nesta semana, um enorme mural dedicado a Marielle foi inaugurado em Berlim.

 

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fonte: https://www.dw.com/pt-br/caso-marielle-tr%C3%AAs-anos-de-um-crime-que-chocou-o-brasil/a-56866451

 


Três anos sem Marielle

Imagem: ColeraAlegria
 

Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

O exemplo de Marielle para construir uma síntese explosiva na busca por uma sociedade emancipada

“[regimes] tirânicos: suas razões se explicam pelo aperfeiçoamento do governo (e, com isso, sobre a estabilização de tal governo) [Leo Strauss, Da Tirania]

O filósofo político italiano Norberto Bobbio disse certa vez: “se olhei mais longe foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes”. Ele estava a fala acerca de como conseguiu analisar fatos da vida política, intelectual e cultural de sua sempre efervescente Itália e do mundo no século XX. Que Bobbio não era um homem comprometido com os ideais de esquerda, e por vezes muito pelo contrário como bem demonstrou Perry Anderson em polêmica épica entre os dois, não é nenhuma novidade para aquelas e aqueles que acompanham o debate público, político e acadêmico. Mas sua mensagem deve ecoar com urgência na esquerda brasileira na atualidade e a busca por nossa reconstrução após a “contrarrevolução” e o golpe de 2016 – consolidado pela eleição do grupo bolsonarista no pleito de 2018. Os eventos recentes exigem que nos sustentemos nos ombros de alguns de nossas e nossos gigantes. Jogo político, disputa partidária, judiciário, militares e a universidade de pesquisa. Fatos recentes, não tão recentes, trazem ao proscênio eventos da vida pública nacional que deveriam ser meditados pelas forças políticas, sociais e culturais de esquerda. Na eleição para a “Casa do Povo” conformou-se um amplo bloco de direita para eleger o candidato do grupo de Bolsonaro (com seu projeto de devastação do país); Arthur Lira é um homem do capital agrário. Ocorre que o partido mais “democrata” da nação, o PSDB, convergiu para o requerente do governo. A maioria da bancada do elegante partido apoiou o candidato do planalto. Nas palavras de um dos políticos do partido é que “o governo apresenta, do lado econômico, pautas que se aproximam daquilo que a gente defende […] ainda [que sejam] tímidas”. Estas são observações de Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, que ainda comenta esperar e buscar por ponderação e moderação do governo de Jair Bolsonaro. Sobrepõe-se ou articula-se ao jogo partidário a prisão de Daniel Silveira: deputado da base do grupo bolsonarista. Ele chamou pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal incitando o “retorno” do AI-5. Com bravura que lhe é peculiar o tribunal na lavra do destemido Alexandre de Moraes solicitou a prisão do deputado. Com efeito, essa trama farsesca empreendeu-se após a publicação do livro-entrevista organizado por Celso Castro (um dos principais pesquisadores da história militar do Brasil) do CPDOC-FGV, em que o general Eduardo Villas Boas confirma a “exigência” em twitte de 2018 de não se aceitar a impunidade no julgamento do Habeas Corpus de Lula pelo STF. (Neste mesmo 2018 o Exército de Eduardo Villas Boas ocupava o Rio de janeiro, e na mesma quadra histórica Marielle Franco era assassinada por dois ex-policiais militares – milicianos – com quatro tiros na cabeça –; e no mesmo período Daniel Silveira, aquele preso por incitar a “volta” da ditadura militar, quebrava, sorriso ao rosto, com seus joelhos, sempre há joelhos aqui e ali…, uma singela placa em homenagem à vereadora, política e ativista negra. O curioso é que no quarto onde fez o vídeo clamando a volta do AI-5, Silveira, ostenta um quadro com a imagem de caveira cravada com uma faca, símbolo do BOPE no Rio de Janeiro.) Para completar o quadro de nossa farsa violenta, um acionista da Petrobras “evoca” em programa jornalístico televisivo (GloboNews em Pauta) a teoria dos dois demônios demonstrando indignação com o suposto e cínico intervencionismo de governo nos preços dos combustíveis.

Excurso sobre Marielle Franco (Presente!)  

Intelectual orgânica; pesquisadora acadêmica; política de esquerda; negra; mulher; lésbica; mãe. Marielle Franco era tudo isso. Resultado contraditório, dialético, imanente e até impensável em uma sociedade como a brasileira. Marielle tornar-se-ia vereadora pelo PSOL-PCB em 2016 alcançando os inesperados 46.502 votos. Seria, fatal e inexoravelmente, uma das grandes personalidades e figuras da esquerda socialista brasileira e do movimento feminista negro radical. Atuante nas comunidades favelizadas do Rio de Janeiro, presente junto às famílias de vítimas da violência policial (o bloco civil-militar-empresarial que continuou a guerra na moldura da constituição de 1988), impulsionadora da causa de mulheres negras periféricas e a ativa política na câmara de vereadores fluminense ecoando Luiz Mahin, Dandara, Tereza de Benguela e Aqualtune – e, por que não, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai. Escritora dos de baixo Marielle interpretou sua sociedade, dando continuidade à nossa tradição de formação crítica nas ciências sociais. Sua compreensão sobre o sentido das UPP’s, em pesquisa de mestrado realizado na Universidade Federal Fluminense (UPP-A Redução da Favela a Três Letras: uma Análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2014) – Marielle foi aluna de ciências sociais na PUC-RJ –, desvela o que é nossa sociedade escravagista (Florestan Fernandes) no cotidiano da cidade. Escrita a partir do melhor da teoria social crítica contemporânea (Ellen Meikisins Wood, David Harvey, Loïs Wacquant), do nosso pensamento nacional (Octavio Ianni, Jacob Gorender, Wanderley Guilherme dos Santos), de pesquisadores de referência na área de desigualdade e políticas públicas (Marta Arretche) e de especialistas nos estudos sobre criminalidade, policiamento de favelas e milícias (Ignácio Cano) – Marielle mobiliza documentos “oficiais” do governo para interpretar a ocupação policial-militar de territórios em que na esmagadora maioria é habitado pela população negra. Nos seus termos instalou-se com as UPP’s um forte e violento “Estado penal, com o objetivo de conter os insatisfeitos ou ‘excluídos’ do processo, formados por uma quantidade significativa de pobres [de pele preta] cada vez mais colocados nos guetos das cidades” (p. 15). Marielle chamava a atenção para algo decisivo no âmbito de nossa história política e social de repressão e exploração dos subalternos; é que as UPP’s forram antecedidas para sua implantação de duas “intervenções” (na Maré) estatal-militar (p. 16): a primeira pelas polícias locais em “30 de março de 2014”, e cumprindo provavelmente o calendário, a segunda se deu em “05 de abril de 2014 pelas Forças Armadas, fazendo valer o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)” (Ibidem). O temor preventivo, a mentalidade contrarrevolucionária e a noção de guerra ao inimigo interno de (pela preta) é que tornam figuras e personagens como Marielle Franco inaceitáveis para nossa elite da classe burguesa, nossos conservadores e liberais e nossas instâncias de poder concentrados (judiciário, legislativo, executivo e militar). Há 1000 dias a vereadora negra era exterminada com 4 tiros na cabeça – por dois membros das forças estatais-policiais. São sim, pertencentes ao Estado os milicianos Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, de acordo com o pesquisador e professor José Cláudio da UFRRJ que estuda as milícias enquanto fenômeno social e político brasileiro por mais de 20 anos. Os que executaram cruelmente Marielle Franco são o resultado dos esquadrões da morte criados nos anos 1960 na ditadura militar: e com o aval dessa. Assim como as milícias hoje, herdeira eficiente e aprimorada, os esquadrões da morte eram formados por polícias militares, civis e bombeiros. Não poupemos as palavras; a execução sumária de Marielle foi perpetrada, “portanto”, por agentes (ou ex-agentes, tanto faz parafraseando Paulo Arantes) da polícia militar constituídos pela ditadura de 1964 enquanto força auxiliar – “uma força repressiva e ostensiva”. (Eles tramaram a morte de Marielle Franco por três meses. Acompanhando com regularidade sua vida diária, rotina, locais que frequentava e pessoas com quem falava; Ronnie Lessa foi sistematicamente a casas de internet para planejar a morte da vereadora negra e no dia do assassinato ele e Élcio Queiroz fizeram campana, como gangsteres do Estado que são, na Rua dos Inválidos onde Marielle se encontrava discutindo com suas irmãs de luta, combate e resistência na Casa das Pretas – há método no caos.)

Talvez nenhum intelectual da esquerda brasileira tenha entendido os sentidos da política no país no fim do século XX (e início do XXI) que o ensaísta e filósofo Paulo Arantes. É com espírito de emergência, palavra que compõe seu vocabulário crítico recente, que nos é sugestivo voltar ao seu texto de 2008: 1964, O Ano que Não Terminou (Boitempo). Não é uma resposta padrão ou mesmo um artigo nos moldes da pesquisa acadêmica, como indica Paulo no rodapé o texto emerge a partir de outros textos. E mais: inserido no volume organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle que tem como titulo-pergunta O Que Resta da Ditadura?, o argumento de Paulo é histórico-epocal. Não é à ditadura que devemos questionar acerca da permanência e vestígios, mas o significado mesmo de 1964. Na sequência gloso esta intervenção de Paulo Arantes à luz dos eventos recente (sem trazê-los à feitura composicional do texto). Antes, uma brevíssima história intelectual.

Formado na passagem da segunda para a terceira geração do departamento de filosofia da USP, Paulo Arantes escreveu um dos principais trabalhos sobre Hegel em nossas universidades. A tese defendida na França nos anos 1970 era uma das pioneiras nos estudos sobre o filósofo alemão. Paulo se juntava ao teólogo Henrique Lima Vaz de Minas Gerais. Mas Paulo diferente de boa parte de seus pares departamentais não é um filósofo profissional (historiador e comentador da filosofia como dizem alguns especialistas) ou mesmo um acadêmico profissional de qualquer tipo[1]. Daí ele ser livre das restrições e limites da universidade – a definição coerente neste aspecto e por justeza é que ele é um intelectual público no sentido dado por Jean-Paul Sartre. (Ele se assemelha a seu símile anglo-saxônico: o historiador Perry Anderson.) Se nos anos 1990 se consolida o perfil de homem público das letas de quando se aposenta da carreira de professor do departamento de filosofia da USP, já no período anterior Paulo Arantes explicitava qual seria seu estilo de atividade. Assim, caso queiramos compreender essa circunstância peculiar de sua trajetória é preciso voltar nossas atenções para a obra Ressentimento da Dialética. Todo o entendimento existencial de Paulo está contido neste longo e denso ensaio sobre vida intelectual pública, dialética como expressão da crítica negativa e história das ideias (nacionais). Com uma prosa erudita orientada pelo melhor da tradição marxista, o que vemos nessa obra maior (a principal e mais importante, talvez de Paulo Arantes) é o comprometimento radical do “homem de lettres, o écrivain” com as causas dos de baixo. A “loguacidade digressiva” do revolucionário, articulada à “dialética negativa” enquanto atividade crítica fez de Paulo Arantes personagem presente nos principais debates da esquerda. Mas, ao mesmo tempo seu radicalismo incontido e real rende a ele a alcunha de pessimista – algo que o incomoda sobremaneira. É que a utopia, “o ceticismo organizado”, que dá forma às linhas ensaísticas do Ressentimento da Dialética jamais encontrou espaço prático-político para a expressividade transformadora e insurrecional que acalenta. Ora, é como se mesmo “não sendo” um bolchevique, a Paulo faltassem os “bolcheviques”. Ainda assim, ele não se renderia nos anos recentes à afasia e/ou dissolução da linguagem. Numa palavra: dialética foi (e é) sua modalidade de ação política.

Foi isto que o permitiu em 2008 escrever o ensaio 1964, o Ano que Não Terminou. O que Paulo diz ali e que nos é sugestivo estarmos atentos em nossa atual conjuntura nacional? Ao estar livre dos compromissos e obrigações da profissão acadêmica, Paulo não reverenciava as constrições e os hábitos do campo com seus arranjos de consenso acerca da literatura, o padrão linguístico de abordagem e as imposições no estilo da escrita. Assim, ele pode dizer com afirmação desafiadora que “o corte  de 1964 mudaria de vez a lógica da exceção” (p. 207) e mais à frente continua, “à luz dos seus próprios critérios civilizacionais, um padrão evolutivo foi irrecuperavelmente quebrado pelas elites condominiadas [neste anos]” (p. 208). É com se há 58 anos fosse tomada uma decisão sobre as únicas condições de existência  possíveis numa sociedade em que fatalmente formar-se-iam figuras como Marielle. Na trilha de Norbert Elias, “reverte-se” (Ibidem) para Paulo o andamento histórico – de fato o golpe era “um verdadeiro processo descivilizador” (Ibidem). Entretanto, há dialética ai. Ocorreu que na descivilização estruturou-se o cenário político da “normalidade de hoje” (p. 2010). Pois, o que dizer da conveniência da Missão do Haiti, das táticas de ocupação territorial da UPP’s, da militarização violenta da segurança pública, do sistema de policiamento privado instaurado Brasil afora, da intervenção de 2018 n Rio de Janeiro e da eleição do projeto-grupo bolsonarista no mesmo ano. Paulo alertava no seu ensaio: “o mundo começou a cair no Brasil em 1964 e continuou ‘caindo para sempre’, salvo para quem se iludiu enquanto despencava” (Ibidem) e ainda despenca com a ilusão de nossas ciências sociais e governos pós-1984 que entoa a política pública como salvação nacional.

Ora não se trata de um argumento simples que está a mimetizar (um decalque ingênuo) a realidade social brasileira e os interesses políticos decantados; o que está em jogo na leitura de Paulo Arantes é como a esquerda compreendeu a “cultura” política difundida em torno ao “efeito do pânico preventivo disparado pela […] [teoria-interpretação] dos dois demônios” (p. 210). (Para quem assistiu à entrevista do conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita na GloboNews em Pauta – 22/02/2021 – e entendeu a weltanschauung ali presente perceberá o que 1964, O Ano Que Não Terminou quer transmitir.) Claro que há sempre a preferência por aquele demônio ao qual por baixo de seu fantasioso cinismo e diatribe está (e esconde-se) o Katechon. No Brasil há iniquidades, os anticristos (pretos e pardos) – que podem formar consciência. Por isso Paulo dirá: “a guerra acabou, a guerra não acabou: tanto faz […]” (p. 211). Mas isto significa, por outro lado que as advertências foram dadas desde o 31 de março de 1964. A sobrevivência da ordem democrática, mesmo aquela que extermina adversários políticos como o foi a caso de Marielle Franco que excursionamos acima está condicionada fundamentalmente pelas “demonstrações inequívocas de convicções moderadas” (Ibidem) por aquelas e aqueles que fizeram parte do lado derrotado na guerra. Com efeito; a partir de 1964 o Brasil, pode-se dizer, foi refundado. E nada revela mais esta condição de nossa história que a leitura que é feita da Constituição de 1988. Trata-se aqui, nos termos do ensaísta da USP, de denunciar com a crítica radical e intransigente as proposições bem pensantes (as tolices de grande parte da esquerda conformista como afirma Perry Anderson) que estão sempre a dizer sobre as necessidades de guardarmos as conquistas e feitos da Carta Cidadã (quem não o faria por aqui?) – e não fazer isto sinaliza aprendizado frágil com a democracia. Pois, aquela havia sido uma negociação consensuada, madura, de uma sociedade reconciliada, de um país que havia aprendido a importância dos direitos, de uma esquerda renovada, responsável: e poderíamos escrever um glossário…

Entretanto, Paulo Arantes talvez escreva sempre na esperança que os mais jovens o leiam – na intenção destes e dos racionalmente sem memória ele propõe uma brevíssima crônica ao qual encontramos a narrativa histórico-política dizer que “o bloco civil-militar operante desde 1964 arrematou o conjunto da obra inaugurando a Nova República com o golpe de veludo, afastando Ulysses Guimarães [bem entendidas as coisas: Ulysses Guimarães!] da linha sucessória de Tancredo, o qual, por sua vez, havia negociado com os militares sua homologação pelo Colégio Eleitoral, de resto, legitimado pela dramaturgia cívica da Campanha das Diretas” (p. 212). Com feito, o que permanece da ditadura então, após “a inovadora Constituição dita cidadã de 1988?” (Ibidem). A resposta é fatal – dialeticamente tudo e nada restam. Tudo – permanecem as forças armadas, a polícia militar e a segurança pública; e a farsa violenta de nossos dias fez agregar as milícias estatais e privadas. Nada – desapareceu o impulso radical, rebelde, profano e revolucionário do horizonte da esquerda. Paulo arremata: “simples assim”. Militarizou-se a segurança pública; medidas provisórias se tornaram técnica de governo; a violência coercitiva é desvelada como garantia do pacto da transição. Ocorre que há no Brasil a pulsação negra, nosso sempre presente momento Marielle, o tumulto diário das classes perigosas. (Sempre se temeu uma Secessão – não há 13% aqui como lembrou Bernardo Carvalho, recentemente – e uma haitização – com estratégias e táticas pós-1917.) Nosso tempo social diz Paulo Arantes, seguindo a trilha deixada por Florestan Fernandes, é o do “paradigma da contrarrevolução preventiva” (p. 218). Assim, mesmo após 1988 o “bloco civil[-empresarial-financeiro-]militar” entendeu desde há muito que sua sobrevivência – seu modo de vida obsceno, seu estilo esnobista, seus lucros “inimagináveis”, sua política realista de faroeste – dependia de transformar a guerra social em normalidade. Esta é a sertralina de aço, acompanhada pela luva de ferro (Conceição Evaristo) para a “ansiedade das camadas proprietárias” (p. 216) no Brasil. Deste modo, a “selvageria da contra-insurgência” (p. 232) contra o inimigo interno (de pele preta) terá aspecto peculiar no continuísmo cotidiano. Formou-se na sociedade de classes brasileira um Estado bifronte: resultado, bem articulado, de 1964®1988/1988®1964: há uma administração estatal para os integrados de sempre (elite burguesa, sem esquecermos do setor dominado e ingênuo da dos dominantes diria Bourdieu, as classes médias) e uma administração estatal para a ralé; um estado organizado no dia-a-dia com vistas a conter o impulso insurrecional dos subalternos e subalternas, e é preciso insistir – de pele preta. Ora, um Estado de exceção, de sítio, autocrático-burguês, necropolítico (todos perenes) e tutti quanti… é necessário entre nós por aqui. O autor de O Novo Tempo do Mundo termina dizendo que os “sinais alarmantes de convulsão [redentora são sempre] possíveis” – e por isso a temporalidade do golpe contínua a rondar com olhos de esguelha (Machado de Assis) e circuito fechado (Florestan Fernandes). O aviso nos foi dado novamente em 14 de março de 2018. Paulo ainda vive e esta prestes a completar 80 anos e acaba de lançar Formação e Desconstrução: uma visita ao Museu da Ideologia Francesa (Ed. 34), livro que muito provavelmente será debatido nos meios intelectuais e políticos; Marielle Franco há três anos foi exterminada por milicianos estatais, mas seu espírito ainda vive com a mesma altives radical, denodo insubmisso e impulso transformador de quando estava entre nós – com a utopia dos campos livres que hão de florescer. Bem entendidas as coisas: é sobre os ombros de ambos que devemos olhar e construir uma síntese explosiva na busca por uma sociedade emancipada.

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

Nota


[1] É evidente que estilizo o argumento. Pois não quer dizer que Paulo Arantes não participa do debate acadêmico-universitário. Além de orientar pesquisas (teses e dissertações), participar de bancas de avaliação de mestrado e doutorado e eventos de área (encontros, congressos, simpósios, colóquios etc.) Paulo anima um seminário de debate com jovens pesquisadores críticos e ativistas políticos às quartas-feiras à noite no departamento de filosofia da USP.

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/tres-anos-sem-marielle/

 

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